segunda-feira, outubro 01, 2007

Por que o socialismo é incompatível com as liberdades individuais?

Este artigo é uma continuação do artigo anterior. Foi escrito no dia 15 de março de 2003 e é uma resposta aos comentários rançosos sobre o outro texto. A foto acima são de crianças russas esfomeadas, na grande fome causada por saques e confisco sistemáticos de cereais de agricultores russos pelos bolcheviques, em 1921, ocasião em que morreram cinco milhões de pessoas de fome.
Alguns de meus rivais socialistas são críticos muito implacáveis de minhas declaradas e ferrenhas antipatias ao ideal socialista. Acusam-me de conservador, reacionário, fascista, pupilo do Olavo de Carvalho, e outras coisas que estão fora de minhas aspirações. Muitos me julgam tendencioso em rotular o socialismo como essencialmente totalitário, apesar de não ser tão genérico, quanto às aspirações de todos os socialistas. Não penso que todos os socialistas sejam necessariamente totalitários. Contudo, penso que, por mais que aspirem a liberdade, a democracia, os direitos humanos, as premissas socialistas que eles tanto admiram são incompatíveis com os ideais de liberdade que tanto pregam. A defesa de uma “pátria socialista”, ou de um Estado socialista, por mais voluntarista e honesto que seja, seus meios são totalmente adversos do fim esperado.

O exercício de um poder voluntarista e misericordioso dificilmente resiste à corrupção, quando ele é ilimitado. Se o poder tende a corromper, o poder absoluto corrompe absolutamente. O Estado socialista, por mais honesto e moralmente virtuoso que ele possa parecer, não dá o direito de alguém possuir tanto poder sobre a sociedade e a vida dos outros, ainda que em boa causa. Aliás, muitos déspotas impuseram a tirania, supondo que faziam por uma boa causa. O inferno está cheio de boas intenções. Tal raiz moral do socialismo é particularmente perigosa, pois invoca uma aura religiosa e messiânica dos poderes absolutos do Estado. Antes acreditarmos que os indivíduos tenham o direito de escolher o melhor para si, do que apenas alguns iluminados do Estado, do partido, da história ou de sei lá quem seja, escolher por todos.

Mas tal fator suscita novas reflexões. Como explicar a popularidade de um sistema, que em toda a sua vigência política, ideológica e real, em nome do povo e do proletariado, foi um dos modelos mais opressores da história? Por que se romantiza um sistema político que soube numa tacada só, destruir violentamente todas as liberdades mais básicas e causar uma coleção incrível de sofrimento e violência? Como acreditar que esse modelo, com todo o seu histórico de horror, ainda seja uma alternativa cabível?

Muita gente idealiza o socialismo e se solidariza com a idéia poética da “propriedade coletiva”, da “solidariedade”, da “igualdade material” ou “social”, da “vontade popular” e outros chavões surrados. Tais discursos são preparados para jovens ingênuos, eternos indignados e possíveis massas de manobra, que caem sem uma reflexão mais séria e apurada dos perigos do igualitarismo e coletivismo radical. Esquecem que a liberdade nem sempre se coaduna com o ideal de igualdade, e a coletividade, cultuada como a vontade suprema pelos socialistas, pode ser a causa mais aterradora de legitimação da tirania, da ditadura e do despotismo.

A “propriedade coletiva”, ao contrário da retórica marxista, antes de ser a propriedade de todos, nos países comunistas se tornou a “propriedade de um só”, nada mais medonho do que um Estado ditatorial e um tiranete de plantão. Em nome da coletivização da propriedade, o Estado, na prática, se outorgou em confiscar a riqueza de seus próprios cidadãos, submetidos à condição de meros servos.

A “solidariedade” socialista foi uma verdadeira paranóia coletiva, o terror institucionalizado do regime na cultura persecutória do alcagüete, que dividia e isolava os cidadãos em desconfianças mútuas, no medo de ser delatado por algum traiçoeiro servil ao partido. Em suma, uma moralidade em que a traição dos vínculos pessoais, particulares e familiares em favor do regime era recompensada, na subserviência e “lealdade” ao poder constituído. Não é por acaso que famílias inteiras foram presas e deportadas por alguma fofoca de um desafeto ou até parente, sem formalidade legal alguma.

A “justiça socialista” foi uma inquisição ideológica, uma caricatura de justiça, um jogo de cartas marcadas, para fazer de “sabotadores” e “inimigos do povo” os bodes expiatórios do regime, vitimas temerosas para as massas cada vez mais amorfas e medrosas.

A “igualdade material” e “social” foram pretextos para a uniformização da condição social dos indivíduos, de suas crenças, seus valores, impostos pelo partido único, detentor do domínio da imprensa e da educação, a fim de que quaisquer dissidências políticas e de pensamento fossem suprimidas. Não é por acaso que o poder absoluto do unipartidarismo e o controle total das fontes de informação foram métodos de domesticar e moldar arbitrariamente a realidade dos indivíduos, presos na redoma das ideologias impostas pelas versões oficiais do Estado.

E, diga-se de passagem, a “vontade popular” dos regimes socialistas é um circo de massificação conduzida por uma propaganda e terror policial do Estado, a fim de se legitimar como poder único e reprimir as minorias dissidentes. A idéia da “vontade da maioria”, tão conclamada pelos socialistas e comunistas, na organização sistemática das massas, é uma farsa, a fim de reprimir a própria liberdade dessas pessoas, quando manifestadas individualmente. Ora, não há melhor forma de aniquilar a liberdade, senão aniquilar a independência do pensamento individual. É fácil manipular a coletividade, o que está estabelecido. Difícil é prever o que os indivíduos pensam na particularidade e no silêncio. É por isso que os regimes ditatoriais e totalitários não toleram o princípio liberal do individualismo político, porque temem pensamentos independentes. E não tolerando o individualismo político, logo, não toleram dissidências. Já nos alertava Alexis de Tocqueville sobre os problemas do igualitarismo socialista, nos dizeres da “igualdade na liberdade” e “igualdade na servidão”. Impressionante como as idéias do lúcido aristocrata francês permanecem tão atuais.

O curioso, todavia, é que com todo este histórico tenebroso, o socialismo é a bandeira de ordem, a redenção dos rejeitados, gays, lésbicas, degredados, drogados, sexualmente liberados, miseráveis, descamisados, feministas ensandecidas, enfim, tudo o que se chama “lumpemproletariat” ou à margem da sociedade. Contudo, uma coisa há de se contrastar: os gays, lésbicas e os demais rejeitados conquistaram mais espaços e dignidade política numa puritana democracia de tradição liberal e “burguesa”, do que nos draconianos regimes socialistas em questão (madame Kolontai que o diga). É mais fácil encontrar gays e lésbicas no poder, num regime democrático inglês ou dinamarquês da vida, do que na tão falada “democracia cubana”, que os expulsa para Guantânamo ou Miami, como leprosos com “desvios burgueses” ou “anti-sociais”. Drogados têm mais liberdade na calvinista e sonolenta Holanda, do que na carrancuda e maoísta China (que os recupera com bala na nuca).

A melhor arma contra as premissas totalitárias do socialismo é a informação clara e precisa, ou seja, o esclarecimento dos fatos contra os idealismos equivocados. Para certas pessoas que se dizem socialistas, as execuções sumárias de Lênin, os expurgos do stalinismo, as orgias de violência da revolução cultural chinesa, o massacre da Primavera de Praga, os fuzilamentos da Revolução Cubana, as guerrilhas sanguinárias da América Latina e outras atitudes imorais e desumanas passam despercebidas, ora como se não existissem, ora como se fosse evento de somenos importância ou induzido por uma suposta “mídia burguesa”.

O caso é que muitos socialistas, ainda que motivados por intenções honestas e decentes, temem ver a realidade nua a crua, sob pena verem destruídos os seus mais elevados e caros ideais. Pois o que seduz no socialismo, vulgarizado para as gentes, é a sua retórica messiânica, apaixonada, demagógica, pseudo-racionalista, cheia de palavras pré-fabricadas de lisonjas aos desvalidos e ódio às classes dominantes. Os apelos utópicos têm grandes promessas aos desesperançosos e revoltados. O problema é a utopia posta à realidade, o que só é um desastre.

Não caberia negar a influência do socialismo como idéia, no contexto da Revolução Industrial, na sua crítica às mazelas da economia capitalista, e em algumas propostas sociais que redundaram na reforma da própria democracia liberal moderna, ainda que nem sempre benéfica. No geral, as democracias liberais tradicionais souberam atender aos anseios dos trabalhadores, sem abdicar do essencial das liberdades individuais. Se no socialismo puro, a crítica era contra uma suposta forma de tirania, o regime socialista, colocado como solução determinante, na prática, se mostrou uma tirania mais sofisticada e brutal. Não é mistério para ninguém que o socialismo foi um verdadeiro fiasco, pois no intuito de trazer o céu para o mundo, em muitos aspectos acabou trazendo o inferno (o que é inexplicável racionalmente como alguém perde tempo com essa velharia ideológica). O socialista que deu certo foi aquele que jogou toda a ladainha marxista-leninista para o ralo da história, e entrou na dinâmica da democracia e pluripartidarismo. E ao contrario de suprimir o capitalismo por decreto, acabou por se tornar social-democrata (para horror dos leninistas mais caninos), antes querendo "humanizar" as relações econômicas (isso é o que eles dizem), do que desejar suprimi-las pela mão férrea do Estado. De fato, ao menos teoricamente, abandonou o marxismo-leninismo.

Como dizia Willy Brandt, o ícone da social-democracia alemã, “quem não foi comunista antes dos 20 nunca será um bom social democrata”. Eu poderia dizer que não se pode preservar o juízo na velhice, sendo comunista a vida inteira. João Amazonas que o diga, na senilidade da vida, acreditando piamente no socialismo “cientifico” da Albânia.

Não pretendo com meus escritos mudar as opiniões dos meus rivais a respeito de suas aspirações (seria um ato de prepotência), mas sim alertá-los a refleti-los sobre os perigos que os raciocínios totalitários do socialismo oferecem a liberdade. O socialismo, na sua essência, não parece compatível com a sociedade livre, aberta, democrática e solidária que muitos socialistas desejam aspirar.

Há, aliás, nos meios socialistas, uma particular e irresistível atração pelo obsoleto. Certas pessoas devem parar de admirar o que nunca deu certo, e com tantos riscos de erros novos a fazer, não há razão para permanecer nos mesmos erros antigos. A história, mestra da vida, tem exemplos de sobra para mostrar e orientar-nos sobre isso. A vindoura “pátria socialista” seria apenas um país imerso de velhas aflições.

Nenhum comentário: