Recentemente assisti a um filme sobre a guerra civil espanhola. Como é de costume num assunto controverso, a película é uma santificação chorosa dos republicanos espanhóis. O título é “libertárias” e fala da história de um grupo de mulheres anarquistas empedernidas num misto de luta feminista e revolucionária, pegando em armas contra os “fascistas” (leia-se, o exército de Francisco Franco). Convém dizer: feminismo e ideologia revolucionária são meras redundâncias. Um aspecto que me chamou atenção neste filme é o primarismo intelectual do anarquismo socialista. Os personagens idolatrados como heróis no filme mais pareciam criancinhas birrentas e infantis, revoltadas contra a autoridade constituída, tal como que revoltadas contra os próprios pais. De fato, duas particularidades se notam nas posições dos anarquistas: a negação de um poder e uma hierarquia de valores, princípios e ciências em relação a eles próprios. E como eles negam que haja algo superior a eles, acabam se deidificando como autistas, como se eles próprios representassem a autoridade encarnada.
Algumas cenas do filme retratam esse tipo de personalidade. Uma fanática miliciana armada, no frenesi da queima de objetos de arte e esculturas de santos de uma Igreja, dizia: - Ni pátria, ni Dios, ni amos (nem pátria, nem Deus, nem amos)! Outro revolucionário, no âmago da histeria da destruição de palácios e conventos, reverberava, quase nestes termos: - Pode-se deixar a civilização em ruínas, precisamente por nós, os trabalhadores, construimos e podemos construir, do nada, um novo mundo (grifo meu). A loucura dessa frase parte do seguinte dilema: a humanidade voltará à idade da pedra, na mais completa tabula rasa, porque o sujeito, revoltado com aquilo que nunca criou durante milênios, agora se acha no direito de prejulgar e destruir tudo que a humanidade construiu. E mais, ele acha que a civilização é construída em torno de coletividades revoltadas do seu tipo. Mal sabe que a civilização é, muitas vezes, criação de inteligências privilegiadas, que se destacam justamente por ser algo mais além da coletividade. Porém, os homens medianos, pequerruchos, formados em bandos, acham que podem criar palácios e igrejas sem o engenho intelectual. Resumem a humanidade pelo trabalho manual rudimentar ou pela força. Enfim, resumem o mundo pela esfera material e animalesca, negando os aspectos espirituais mais elevados, que distinguem as inteligências superiores dos simples ineptos.
Se não bastasse a rebelião dos homens da massa, as mulheres da massa entram junto, como é o caso da história do filme. Uma rebelde da anarquista CNT (Confederação Nacional do Trabalho) reivindica um grupo só de mulheres para pegar em armas contra os “fascistas” e se recusa a obedecer aos homens. Ou melhor, as mulheres devem lutar de igual para igual com os homens na guerra civil. Esse hermetismo intelectual, essa cultura de auto-suficiência presunçosa em ser algo comum, inclina-se a um estranho rebaixamento da existência. Ser mulher não implica nada muito especial, se partirmos apenas da idéia de seu sexo (a não ser a beleza, delicadeza e um trato sutil de inteligência, algo que as feministas se recusam a ser). No entanto, a feminista radical transforma isso numa mistura ressentida de vitimização e idolatria. É como houvesse algo especial em ser inferior. Uma inferioridade que clama uma posição raivosa de soberba. Ou melhor, uma soberba e uma pompa que se justifica por se sentir eternamente inferior. O espanhol Ortega y Gasset falava que a nossa época contemporânea era “masculina”. As mulheres querem ser como os homens. E pobres coitadas, elas engolem as tolices destes, querendo imitá-los. No final, as pobres anarquistas são massacradas pelos soldados marroquinos nacionalistas e uma delas, barbaramente atacada e quase estuprada, só não é morta porque um capitão do exército franquista enxota quase a pontapés os soldados. Antes, as mulheres faziam filhos e os homens os levavam à guerra. Agora, as mulheres deixam os filhos e vão à guerra. Não é um sintoma da barbaridade de nossos tempos?
E por falar em inteligências, a rebelião das massas, das turbas, é a rebelião contra a inteligência, a rebelião do homem comum contra aquilo que ele mesmo julga e sabe ser superior. De fato, as ideologias revolucionárias fazem da quantidade um elemento acima da qualidade; fazem do número maior de idiotas uma força suprema ao inteligente solitário. Depois soube compreender perfeitamente a quem o vigoroso escritor Ortega y Gasset falava, por volta de 1928, sobre a famigerada sublevação dos “señoritos satisfechos”. O “satisfecho”, conformado com sua mediocridade, é inconformado com a superioridade alheia. Daí ele ter sido o braço armado da guerra civil espanhola, destruindo fachadas das igrejas barrocas, queimando pinturas de El Greco, fuzilando os eruditos padres de Aragón ou Salamanca e se achando o supra-sumo realizador de uma época. De fato, reconheçamos, ele o é. A diferença é que transformou uma época em obscurantista.
Voltemos ao caso das mulheres anarquistas, até então, chamadas de “libertárias”, pelo filme. É curioso perceber que o anarquismo pode ser qualquer coisa, menos libertário. Até porque, desde a revolução francesa, nunca se matou e oprimiu tanto como qualquer causa “libertária” (a única causa que talvez supere a liberdade em matança é a igualdade).
O anarquismo é uma curiosa confusão silogística entre a liberdade autista do indivíduo e sua total sujeição à coletividade. São duas coisas antagônicas, senão incompatíveis. A revolta contra as hierarquias é apenas a destruição orgânica das relações equilibradas de poder da sociedade, para dar espaço ao despotismo mais assustador. No filme, uma revolucionária anarquista invade um bordel e aponta um fuzil para uma cafetina e um cliente, um padre, “libertando” todas as prostitutas do puteiro. Lembra Dom Quixote beijando as mãos de Dulcinea, elevando a camponesa ignorante como donzela. O fato, paradoxal em si, denuncia a confusão: uma mulher que diz lutar contra todos os poderes e hierarquias do universo pega em armas, justamente para impor suas noções de política. Alguém diria: - Está se rebelando contra a tirania. Todavia, a violência utilizada para reprimir quem não entra na cartilha política já é a expressão mesma de um novo poder que se forma. O anarquismo, tal como outras ideologias revolucionárias, não é substancialmente, uma rebelião contra todas as hierarquias. Até porque a sociedade é naturalmente hierárquica, é um dado da natureza do homem e da realidade mesma. Lideranças, homens de carisma, homens de idéias, homens de empreendimento, sempre vão inspirar àqueles que precisam de um direcionamento para suas forças e opiniões. Porque a hierarquia não é apenas mera relação de poder. Ela é divisão do trabalho, divisão de tarefas, divisão voluntária de esforços, em que cada sujeito toma uma função para si e aceita uma ordem para realizá-lo. Seja numa sociedade de cinco homens ou de um milhão de pessoas, sempre existirá aquele que se destaca porque toma a iniciativa pelo resto. E a maré e a civilização vão juntas com ele.
A hierarquia significa também uma escala de valores, seja de natureza ética, moral, epistemológica, desde os superiores até os inferiores. Reflete, inclusive, a qualidade individual de cada pessoa no meio social e dentro de seus atos, talentos, aptidões e papéis sociais. Mal se percebe que os juízos de valor que os homens tiram sobre si mesmos e a sua realidade existente são hierárquicos. Mesmo apelando às forças transcendentais do universo, cuja figura maior é próprio Deus, o poder divino é a demonstração óbvia da expressão máxima da hierarquia no mundo.
Por outro lado, a valoração hierárquica implica sua própria limitação. Porque a racionalização da hierarquia expressa uma definição, e, por conseguinte, restrições ao alcance desse poder. A anarquia, destruindo a noção mesma da hierarquia, aniquila a definição e as atribuições do poder. Se não há o que pode ser definido como poder, o seu exercício pode ser qualquer coisa, pode ser qualquer mando.
No entanto, nem Deus, que é absoluto, exerce um poder arbitrário. E os anarquistas (e incluo no rol, os comunistas), na confusão mental que é notória neles, querem destruir as hierarquias racionais, necessárias e delimitadoras de poderes na sociedade para concentrar o poder na “coletividade”. Na prática, porém, isso é impossível. A “coletividade” propriamente dita só existe se houver organização. E organização é, basicamente, hierarquia de uns sobre outros. Entretanto, a exaltação do coletivismo supremo do anarquista é o contra-senso, uma forma de hierarquização. Porque o anarquismo não nega as hierarquias. Pelo contrário, o que os anarquistas levam, substancialmente, é o absolutismo das hierarquias mais opressivas e irracionais, pois nascem da premissa de que a coletividade é uma unidade amorfa, compacta; e na falta de uma estrutura orgânica das relações políticas de poder, a massa se torna dispersa e caótica. Ou mais, a massa agindo por si mesma é tirânica. Até porque a desordem é aquilo que Hobbes chamaria de “estado de natureza”: a guerra de todos contra todos. Contudo, a maioria das pessoas não suporta isso. A “coletividade”, por assim dizer, exige uma coesão, um mando que a organize. Na falta de um equilíbrio de poder, das divisões de poder, só resta uma autoridade centralizadora e cesarista, dentro da ausência das hierarquias intermediárias, para perpetuar-se sobre a massa. O anarquismo não destrói o poder. Destrói sim a qualidade e a capacidade de valoração do poder, em nome da quantidade que atomiza e esmaga politicamente o indivíduo dentro dessa coletividade. Quantidade, que no final, acaba em tiranias.
Não me espante que quase todas as ideologias anarquistas sejam essencialmente ditatoriais. O anarquismo, basicamente, é uma dissolução da sociedade política estável, com seus equilíbrios públicos e particulares, suas voluntariedades, seus hierarquias intermediárias e delimitadoras, seus pactos e seus interesses consensuais, para a absolutização completa de uma hierarquia centralizadora e totalitária e a homogeneização da comunidade, destruindo pluralismos e diferenças. Quase todo caos e a dissolução de uma sociedade política levam ao despotismo.
A guerra civil espanhola, tão exaltada na figura de seus grupelhos revolucionários, é a demonstração cabal da dissolução da sociedade política. Saques, fuzilamentos, massacres, estupros, queima de conventos e igrejas, violação de túmulos, bibliotecas e patrimônios históricos destruídos, sob a ação das turbas armadas que cantavam “A las barricadas” pelas ruas, representavam o início da nova ordem totalitarista que assolaria a Espanha. Os nacionalistas encarnavam a velha ordem conservadora e salvaram o país. De fato, a direita ganhou a guerra civil porque fez valer a realidade das hierarquias e da sociedade política. Ela não estava preocupada em “mudar” a realidade ou sacrificá-la nas disputas pseudo-escolásticas das ideologias. Enquanto os comunistas, anarquistas e trotskistas se matavam entre si por quizílias ideológicas e arruinavam a sociedade civil, a direita, que era tão fragmentada quanto a esquerda, tinha tão somente um propósito comum: salvar a Espanha do comunismo. O general Francisco Franco foi bem sucedido nessa empreitada. A direita venceu porque obedecia a hierarquias e isso foi primordial para sua vitória, ou seja, sua capacidade de organização e seu objetivo determinado. Um chefe forte, uma direita unida, uma soldadesca leal, pôs fim à desordem.
Por falar em “a las barricadas”, lembro-me de uma cena particular do filme: os anarquistas empunhando armas, maltrapilhos, com gorros da CNT, entoando em cima dos caminhões a inflamada e rebelde canção citada e dando vivas à revolução! Esse ódio à autoridade, esse desprezo bárbaro pelas coisas elevadas e superiores, assemelha-se a um bando de criancinhas mimadas e birrentas, que cansadas da professora do jardim de infância, infernizam a sua vida, esgotam a sua paciência, expulsam-na da sala de aula e tomam conta da creche. Ou, no mais, é a revolta histriônica de um recém-nascido, que cansado de obedecer aos pais, quer destroná-los de casa. Para as criancinhas desobedientes, umas boas palmadas resolvem. Para os anarquistas, os paredões e as cadeias franquistas. Simples assim!