sábado, fevereiro 17, 2007

Suplício dos inocentes. . .

“Vox in Rama audita est, ploratus et ululatus multus. Rachel plorans filios suos, noluit consolari, quia non sunt”.

(“Em Rama, se ouviu um grande clamor, um choro, e um grande lamento: vinha a ser Rachel chorando a seus filhos, sem admitir consolação pela falta deles.” Evangelho segundo São Mateus cap. 2, Versículo 18).

Raramente houve algo tão criminoso, tão abjeto, tão desprezível, como presumir a fórmula absurda de que a miséria gera violência. É engraçado como algumas criaturas imbecis, entre os quais jornalistas, educadores e formadores de opinião, declaram que o povo é mais violento porque lhe falta bem estar material. Como se a moralidade pudesse ser medida pelo bolso ou pela miséria. Como se potencialmente, os pobres fossem essencialmente violentos! Tal idéia, antes de explicar uma realidade concreta, é uma indução perversa do raciocínio moral. Ela inverte a responsabilidade moral dos atos de quem age, e criminaliza, justamente, quem sofre o ato. Ou seja, se alguém matar o outro, a culpa é de quem é morto, não de quem mata. Daí o raciocínio patológico, doentio, monstruoso, de que a sociedade é “culpada pelo criminoso. É claro que os criminosos vão se sentir livres para matar: estão moralmente justificados, pelo fato simples e cabal de que são isentos de culpa pelos seus atos. As vítimas são “culpadas”, e, logo, merecem ser estupradas ou mortas. Ou esmagadas, com o cérebro pelo chão.

A morte de João Hélio, uma criança de seis anos, no Rio de Janeiro, por criminosos que o arrastaram amarrado num carro, até se esfarelar no asfalto, é mais outra estatística da banalização do mal. O fato representa a falência moral de uma sociedade, o total desprezo pela vida humana, a total animalização da vida social. Mas, quem é o culpado? A miséria? A desigualdade? A sociedade capitalista? Enquanto cidadãos honestos, ricos e pobres, são assassinados neste país, a intelectualidade burra os criminaliza, como culpados pelas próprias mortes. Como sempre, a mortandade sangrenta nas grandes capitais tem uma justificativa ideológica e moral; ou melhor, antimoral: assassinos são assassinos porque lhes faltam escolinhas e amparo moral do Estado. Como se a tutela estatal pudesse se auto-sacralizar para transformar os bandidos em homens santos. E, com tantos crimes bárbaros, a tendência é a sociedade se chocar, para depois, aceitar, bovinamente, que é criminosa. Esta sociedade é visivelmente doente.

A crise moral deste país é a mais grave de sua história: nunca o povo brasileiro foi tão rebaixado enquanto ser humano. Na verdade, se os cidadãos desta república têm alguma responsabilidade, é de não terem empunhado a espada contra o injusto, quando a criminalidade estava se tornando institucional, regra. Há anos que o caos ronda o país. No Rio de Janeiro, os assassinatos e o tráfico de drogas ainda não eram comuns, quando a sociedade e o governo eram apáticos para combater um mal que antes nascia. Anos e anos de violência se expandiram, para que hoje se queimem ônibus, matem pessoas pelas ruas, trafiquem drogas em grande escala e os bandidos ditem quem deve viver ou morrer. Os cidadãos perderam sua liberdade nas ruas e nas favelas. Estão aprisionados em suas casas. Os bandidos são os reais soberanos das cidades. A inocência se tornou crime e a bandidagem lei.

A moral privada na consciência de cada cidadão está esvaziada; a população esqueceu os valores elementares do cristianismo, de amar o próximo, e só restou mesmo uma ideologia de inveja, de ressentimento, sublimada em luta de classes, que só incentiva e faz apologia da matança. Na prática, o povo brasileiro passou por um processo sistemático de destruição moral dos seus valores. Desde a educação, até as leis do Estado, foram criadas para condenar a moralidade do cidadão honesto e desarmar a população para os bandidos. O ativismo militante na imprensa e na mídia divinizou o bandido como justiceiro social. Os filmes brasileiros são tudo apologia comunista da criminalidade. Criminalidade apologética gasta com o dinheiro público. E muita gente no ramo da justiça e mesmo da segurança pública pensa dessa forma: quanto mais intervenção estatal na cultura e menos coerção contra bandidos, mais a violência tenderá a diminuir. Falácia pura! Não é por acaso que o vácuo moral de uma sociedade, só resta mesmo ser ocupada por um Estado, que durante muito tempo, estimulou a cultura do crime. É a ditadura cultural politicamente correta, que ameaça imbecilizar nossos filhos e conduzi-los, muito mais além, para o crime, puro e simples. De fato, a idéia estúpida de que “políticas públicas”, na bajulação de bandidos, ou a interferência maior do Estado na educação vai resolver nossos problemas, são apenas pretextos para destruir a família, a fé cristã e o direito dos pais de educarem seus filhos, sem o controle dos engenheiros sociais. São, em suma, pretextos para que o Estado estatize a consciência moral e a vida das pessoas. Ou será que o presidente da república semi-letrado deste país tem condições de ensinar alguém? Que dirá então das cartilhas pornográficas que estão sendo distribuídas pelo governo, para menores de 13 a 18 anos, estimulando-as a treparem livremente? Inclusive, na mais completa violação da integridade e do pátrio poder das famílias, a cartilha sexual do PT induz o menor a esconder sua vida pregressa para suas famílias, insuflando a revolta de filhos contra pais. Essa é a “educação” que nos resta do Estado Laico, uma educação que estimula a promiscuidade e o culto da perversão moral.

Enquanto isso, tolerou-se a violência até a demência: é pior, o povo vota em criminosos no poder, mesmo sabendo que estes roubam. Se 60% dos eleitores brasileiros elegeram um governo federal comprometido com o banditismo institucional, com o narcotráfico, e mesmo com o terrorismo, financiado por grupos de guerrilha estrangeiros, isso mostra o grau de alienação de povo para com seu destino, o grau de banalização do mal de um país que contribui para a sua própria depravação. Isso é perfeitamente compreensível, diante da transmutação cultural incentivada pelo Estado, pela imprensa e pela militância cultural de esquerda, que há anos domina os centros intelectuais este país. Enquanto o ex-ministro da justiça, um advogado criminalista, fazia de tudo para ocultar os crimes do governo, não moveu uma palha para colocar os verdadeiros criminosos na cadeia. Que moral teria um governo que esconde seus próprios crimes, enquanto é omissão nos crimes do resto? Isso porque ele não somente esconde seus crimes, como o patrocina. E que moral uma sociedade tem para condenar os crimes que sofre? O governo federal transformou uma boa parte de seus eleitores, cúmplices de seus crimes, pelo voto. . .

A moralidade pública do povo está se tornando mesquinha: o materialismo ronda às explicações existenciais da nação. Não é por acaso que toda associação à violência está relacionada à miséria, já que uma boa parte dos brasileiros consideram os bolsos mais importantes do que sua segurança ou mesmo sua dignidade. Enquanto uma parte pensante e mesmo os humildes desta nação se preocupam demasiado com os beneplácitos econômicos e com a falsa ilusão de bem estar, toda um convívio social está em ruínas. O Brasil está perto de uma guerra civil nas ruas. O pai de família médio honesto e cumpridor das leis está desamparado; é vitima de toda sorte de infortúnios; e os inocentes, aos montes, morrem no dia a dia de uma sociedade cada vez mais amorfa, perdida na sua inépcia moral. Na verdade, os inocentes e os honestos são criminalizados: se reagem à violência, se cobram leis mais severas, se defendem suas famílias pelas armas, são esmagados pelo aparato ideológico do Estado, dos movimentos sociais, dos intelectuais de esquerda, das organizações de Direitos Humanos que defendem bandidos. São acusados de “fascistas” por cobrarem o cumprimento do papel do Estado onde ele mais se isenta. No Rio, uma senhora que deu um tiro na mão de um bandido, em vias de se defender, quase foi esmagada pelo aparatichik de bandidagem: foi capaz de ouvir manifestações esquizofrênicas na frente de sua casa, com carros de som, de movimentos sociais que pediam sua prisão por ter sobrevivido ao assalto. Nas palavras desses fanáticos, a dona de casa atirou num coitadinho “negro”, “pobre” e “sem-teto”. Quem devia morrer era ela. As vítimas da violência neste país são abandonadas pelo poder público, pelas ong´s, pela polícia e pela justiça. Pior, são criminalizadas até por reagirem. . .

Na prática, inocentes como o menino assassinado no Rio de Janeiro não têm ong´s ou movimentos dos Direitos Humanos que chorem por ele. Vox in Rama, somente chora Raquel, inconsolável por seus filhos, ou as mães de todos os inocentes. Tal como na história bíblica, só as mães choram pelos seus filhos. E, no entanto, a sociedade, ainda que aparentemente indignada, é surda ao choro delas, já que é chantageada a crer que inocentes são culpados. Ninguém escuta o choro delas. A população teme ser criminosa, condenando os assassinos. As organizações dos Direitos Humanos escutam os lamúrios dos presos que matam, e que usam da irresponsabilidade moral, para matarem mais ainda. Mães honestas não merecem atenção dos Direitos Humanos. Elas são culpadas ao gerar filhos “criminosos” por serem inocentes, enquanto os bandidos são “vítimas” da sociedade. O Movimento Viva Rio, notório pela penca de patifes defensores de bandidos, já tomou partido dos criminosos, claro!



Há de se recordar um outro crime, que chocou a sociedade brasileira: o homicídio brutal de um casal de namorados adolescentes, em São Paulo. A mesma sociedade comoveu-se quando o rapaz teve sua cabeça estourada por uma espingarda e a jovem foi estuprada e degolada com uma faca por um menor. A população ficou revoltada com o crime, enquanto se pediu penas duras contra os criminosos. Enquanto isso, os militantes de esquerda só faltaram criminalizar o choro do pai da moça, que fez de tudo para salvá-la. Houve até uma jornalista imbecil que ainda condenou os aspectos físicos e sociais da moça: ela merecia morrer porque era branca, de classe média e de fé judaica. Passada a comoção, a população esqueceu do crime e a situação só piorou. E hoje, mais um inocente morre, uma criança, para que a sociedade, mais uma vez, desperte de seu sentimento cristão residual, exigindo justiça aos culpados e a piedade aos verdadeiros inocentes. Será que tudo vai ser esquecido de novo? Será que as mães e pais honestos deste país vão continuar vendo a morte vil de seus filhos? Quantos filhos de Rachel precisarão morrer para que a justiça seja feita?

Belém, Pará, 17 de fevereiro de 2007.



segunda-feira, fevereiro 12, 2007

A digna pobreza de nossos avós. . .

Ainda me recordo o tipo de educação familiar que foi dada a meus avós e suas declarações sobre a época em que viviam. Minha avó, que nasceu numa pobreza horrenda, teve uma formação moral acima da média para nossos tempos. Na Belém dos idos de 1930, ela se deparou com uma situação familiar muito difícil: filha de retirantes nordestinos, sua mãe morreu quando era ainda criança. Seu pai, um humilde pedreiro, trabalhava o dia inteiro e não podia dar a devida atenção a filha. No entanto, ela vivia em um bairro de periferia onde toda a vizinhança era muito caridosa. Todas as famílias se conheciam e todas as meninas da rua eram amigas. Em épocas mais complicadas, minha avó, ainda menina, almoçava na casa dessas colegas, e era amparada por outras famílias.


Anos depois, com muito esforço e trabalho, uma boa parte dessas jovens melhorou de vida. Minha avó conseguiu prosperar e ter uma vida digna, sem as penúrias do passado. Impressiona-me o grau de lealdade dessas pessoas: até hoje minha avó guarda essas amizades de infância e antes de suas complicações de saúde, ela ajudava em donativos suas amigas pobres. Assisto a muitas visitas de suas amigas idosas, sempre preocupadas com a saúde dela. Infelizmente, algumas dessas amizades de sua infância já se foram. Percebo na minha avó, uma espécie de melancolia, de uma época que não volta mais.

Esse grau de irmandade só é visível quando um pouco de valores cristãos comunitários são ainda existentes no coração do povo. Minha avó sempre foi uma mulher religiosa: a idéia mesma de fé e transcendência sempre fizera parte de sua vida. Como eram religiosos, alguns católicos, outros espíritas, seus amigos e conhecidos. E havia neles uma dignidade moral raramente encontrada. A pobreza nunca serviu de justificativa para a maledicência. Entre eles, sempre existiu a idéia clara, cristalina, do que era certo e errado. Não comungavam com bandidagem, criminalidade, nada. Isso era totalmente desconhecido, senão alheio. Na pior das hipóteses, ter um filho bandido ou criminoso, era motivo de deserdar da família.

Havia um certo ar de inocência nas relações entre eles. A malícia exacerbada que se conhece nos dias de hoje, era totalmente estranha, fora do seu cotidiano. As mulheres tinham um certo ar de pureza; mães solteiras eram relativamente desconhecidas ou se existiam, eram mal vistas. Relações sexuais fora do casamento causavam escândalo. Paradoxalmente, nas famílias pobres, havia o concubinato, apesar de que a tendência era de completa recriminação social a este tipo de relacionamento e a consagração clara do casamento religioso. Da família mais pobre até as classes altas, a ética familiar era a mesma: com exceções raríssimas, as mulheres se casavam na Igreja e homens deviam se comportar com as mulheres, sob pena de uns açoites dos pais das moças. Os namoros eram policiados e os encontros entre namorados eram um tormento. Até as festas de carnaval da periferia tinham suas noções de moralidade rigorosa. Dizia-se que os incautos, os maliciosos e os baderneiros eram expulsos a pontapés nessas festas. Tirar graça com as moças das festas dava expulsão. Quase tudo era muito sutil, muito formal. E as fantasias carnavalescas, muito bem recatadas. . .

A honra era um elemento profundo na sociedade brasileira. Curiosamente, uma boa parte dos crimes era passional, relacionada à família. Casos de adultério ou mesmo ofensas morais a alguém era algo passível de morte. Neste aspecto, os códigos de conduta pareciam medievais: era quase um duelo. Entretanto, os crimes eram raríssimos. Uma história famosa na sociedade paraense, que ocorreu muito antes do nascimento da minha avó, reflete a moralidade daqueles tempos: no ano de 1900, uma senhorita humilde de 19 anos, grávida de sete meses, chamada Severa Romana, foi brutalmente assassinada a golpes de navalhada. A história é uma trama tipicamente familiar: Severa era esposa de um soldado do exército e seu marido tinha abrigado um cabo, um amigo da mesma corporação, para que se hospedasse em sua casa. Todavia, o cabo ingrato começou a assediar a esposa do soldado e recusando-se às suas investidas, a mulher foi relatar o caso ao marido. Na noite do dia 02 de julho de 1900, o cabo encontrou a esposa sozinha na casa e munido de uma navalha, tentou estuprá-la. Depois de resistir ao ataque, a mulher foi degolada com a arma branca. O crime chocou de tal maneira a sonolenta sociedade paraense, que a jovem foi elevada a uma espécie popular de “mártir da honra” católica da mulher fiel. Muitos crédulos elevaram-na como “santa”. A mulher, que não tinha onde cair morta, teve direito até a lápide perpétua com os custos pagos pela prefeitura. Porém, a pobre mulher mui provavelmente nem era batizada e não constava nenhum atributo em vida de santidade da moça. . . Recordo-me ainda dos autos do processo do crime, arquivados no Tribunal de Justiça aqui em minha cidade.

Outro caso curioso ocorreu em 1915. Um homem da alta sociedade contratou uma moça do interior para trabalhar em sua casa. O sujeito acabou por se envolver com a pequena, e, tendo um caso amoroso, prometeu se casar com ela. Entretanto, o homem começou a rejeitá-la, já que estava prometido a uma mulher da classe alta, como ele. A moça, furiosa, desonrada, pegou uma arma, disparou no amante e depois se matou. O homem acabou por sobreviver. Curiosamente, algumas mulheres da alta sociedade paraense começaram a publicar cartas em jornais, indignadas com o sujeito, porque deflorou a jovem sem assumi-la, dando razão para à própria moça! Um ataque feminista assolou a conservadora sociedade paraense e o homem acabou tendo sua má reputação exposta ao público. As relações criminosas eram familiares, quase em parentesco. Um senhor que vivia nos velhos tempos me relatava o que ele achava de um homem que deflorava uma “mulher de família” e espalhava a história para todo mundo: “Ele devia ser morto!”. O caso mais comum era o do marido que matava a esposa pela honra! O argumento da esposa adúltera assassinada pelo marido, por violar a honra do casamento, era, inclusive, uma tese aceita para absolvição nos tribunais. O tempora, O Mores!


Havia um outro detalhe que minha avó cultivava: os estudos. Quando ela era jovem, deixou de estudar porque o pai, muito rigoroso e ciumento, a tinha proibido. Anos depois, quando ela melhorou de vida, começou a estudar. Ou seja, na casa dos trinta anos de idade. Depois disso, iniciou seus estudos em inglês, a grande paixão da vida dela. Minha avó causava admiração dos alunos mais jovens, quando viam o esforço dela, uma mulher sexagenária, em aprender uma língua estrangeira numa sala de aula. Seu jeito simples cativava a todos. Os estudos, para ela, tinham valor. Aliás, para os pobres de sua época, conhecimento era um atributo respeitável, decente. Não era somente ornamento ou forma de ascensão social, mas, simplesmente prazer. Ser culto fazia distinção para as pessoas, como sinônimo de grandeza intelectual, em suma, de liderança. Incultura, analfabetismo, ignorância, comuns naquele tempo, eram vistos com desdém, desprezo. Nenhum homem inculto, por ser do povo, se destacava entre os pobres, precisamente porque os pobres não viam seus iguais como liderança. Naquela época, os pobres valorizavam justamente àqueles que se destacavam moral e intelectualmente, como referência de valor. Conceitos elitistas saudáveis como estudo, perseverança, honestidade e valores morais, eram notórios entre a gente pobre brasileira de cinqüenta anos atrás.

A sociedade brasileira católica, cristã, cultora da família e dos bons costumes, era ordeira, pacífica, não-violenta. Patriarcal, e, em parte, severa, contudo, era profundamente solidária e acolhedora. As famílias eram numerosas. Casais pobres formavam verdadeiros clãs de mais de dez filhos. Porém, raramente saia alguém desonesto ou ímprobo. Os pais educavam diretamente os filhos e a disciplina era rígida. Os mais velhos eram profundamente respeitados, à beira da sacralidade. As escolas, algumas católicas, os padres tinham apreço na comunidade. E os professores, quando entravam na sala de aula, os alunos se levantavam de suas mesas, em sinal de respeito e reverência. Isso porque as escolas de meninos e meninas eram divididas: em Belém, o Colégio Nazaré, dos padres franceses maristas, era exclusivamente de homens; e as mulheres estudavam no Colégio Santa Catarina, junto com as freiras.

Era uma sociedade muito mais pobre, sofrida e bem mais desigual: ainda escuto dos antigos, relatos sobre a morte, que era comum, de crianças. O povo, muito devoto, rezava o terço por esses inocentes, tal como se fossem vítimas do Rei Herodes. Em particular, a sociedade paraense guardava com fervor as tradições marianistas do Círio de Nazaré. Até hoje ainda observo senhoras levando a santinha em procissão, de casa em casa, apesar de que essa prática foi ainda mais forte no passado!

Minha avó passava fome e nunca se prostituiu; mal tinha família e, no entanto, tinha uma conduta moral exemplar. E a pobreza nunca foi justificativa para chorar seu destino; lutou e conseguiu ter uma velhice digna, como muitos de seus contemporâneos. Na verdade, toda uma classe média é vinda precisamente dessas pessoas pobres e perseverantes, que lutaram para ter melhoras de vida, justamente com essa formação moral.

Às vezes medito o que ganhamos e o que perdemos com a radical transformação cultural da sociedade, como a liberdade sexual e a modificação da família e da moral. Na atualidade, os jovens são muito mais livres do que nossos avós. Vivem muito melhor do que eles. Aliás, até os pobres têm regalias que até então, os pobres de cinqüenta anos atrás nem sonhariam. As mulheres estão numa posição social privilegiada. A educação e a informação são muito mais acessíveis, as facilidades são maiores, e, no entanto, a nossa sociedade é mais violenta, mais desunida e muito mais perversa. E, muitas vezes, mais ignorante. Será que temos algo a ensinar a nossos antepassados? Será que a perda total dos valores tradicionais da família e da honestidade pública foi alguma espécie de ganho?

Os pobres são induzidos a invejar os ricos e se tornam desonestos, ladrões, gatunos e rancorosos daquilo que não possuem. Muitos não alimentam uma ética de trabalho, pelo contrário, querem saquear os mais prósperos. A desunião se dissemina entre eles e o vizinho é capaz de agredir e matar o outro por migalhas. Os filhos odeiam os pais e os pais rejeitam os filhos; e a liberdade sexual levou uma boa parte dos jovens à promiscuidade pura e simples. Os jovens, que eram protegidos de muitas temeridades, estão expostos a toda sorte de abusos e doenças. O caos das mães solteiras e dos filhos indesejados é o preço da exaltação da liberdade sexual irrestrita, sem as responsabilidades e limites morais inerentes ao sexo. Isto porque a delinqüência brutal e a violência assombrosa nas cidades se devem, justamente, à quebra total da moralidade familiar. Pais irresponsáveis e levianos, filhos desamparados, indivíduos sem consciência moral.

Os jovens de épocas passadas eram disciplinados pela autoridade dos mais velhos. E a velhice e madureza eram sinônimas de autoridade e sapiência. O que se vê hoje é o culto do jovem irresponsável, mimado, que elevado nas alturas da bajulação indevida e isento de responsabilidades, descamba para a perversão moral, para a criminalidade e para o banditismo. Com tantas regalias, tantos mimos, eles se tornam assassinos, violentos, cruéis, desumanos, estupradores, salteadores e canalhas! Daí as causas da violência, que estão mais no espírito de dissenso ético e moral da população do que necessariamente em seus bolsos. Até porque a relação entre pobreza e criminalidade não somente é falsa, como preconceituosa.

É claro que a sociedade patriarcal, sob muitos aspectos, não deixa muita saudade. A moralidade sufocante, draconiana, demasiado sectária, não corresponde mais aos anseios de nossa realidade atual. A visão austera da moral de nossos avós era por vezes surda com relação aos conflitos individuais mais complexos. Os conflitos familiares mais profundos eram ocultados sob o véu da moralidade. E o comportamento individual, no âmbito moral e sexual, era duramente restrito nas escolhas. As pessoas tinham pouca liberdade individual e se sentiam frustradas, quando suas necessidades e aflições não coadunavam com a moral vigente. E o autoritarismo do pai ou do marido podava os filhos e as esposas. Sem contar outros aspectos odiosos, comuns àqueles tempos.

No entanto, a sociedade tradicional tinha valores, que do ponto de vista ético, eram nobres, elevados, corretos, e que superam, em muitos detalhes, a moral de nossa sociedade atual. Na prática, os velhíssimos valores cristãos da família são o fundamento basilar de nossa civilização e sociedade política. Por mais que seus critérios aparentes sejam modificáveis, a essência da unidade familiar é a mesma. A família serve de acolhimento ao indivíduo e resguarda seus sentimentos e relações mais autênticas. Ela protege o indivíduo do desamparo, criando-lhe as referências morais para a vida adulta. É perfeitamente possível conciliar a moral tradicional com as liberdades individuais conquistadas, até porque os valores morais herdados da tradição são positivos e servem de sustentáculo para muitas liberdades que desfrutamos. Os profundos laços familiares, a honradez, a honestidade, a solidariedade, as amizades leais entre amigos, o valor do conhecimento e da busca da prosperidade pelo trabalho, são valores necessários que se perderam em nossa sociedade. As gerações de nossos avós, neste quesito ético, são superiores a nossa geração.

O paradoxo da liberdade atual é que saímos de uma sociedade autoritária e repressiva para uma sociedade libertina. A liberdade que os indivíduos possuem hoje, em si mesma, não é ruim. Em muitos aspectos melhorou as oportunidades e as buscas da felicidade individual, sem as coibições da moralidade tradicional. Em compensação, a carência de uma base moral que possa fundamentar essa liberdade é o preço que se paga pela tragédia do caos social. A ruptura com a moral tradicional se tornou uma tragédia, porque abriu portas para uma liberdade irresponsável, destrutiva e deixou um vazio estrutural de moralidade. A explosão de violência e criminalidade tem muito mais a ver com esse contraste moral do que as tão alardeadas tolices a respeito da pobreza ou da distribuição de renda.

Essa ruptura acabou por demonizar o legado da tradição. Nem todo o legado moral tradicional é mau. O fato de sermos livres é o que se exige maior capacidade de discernimento moral e ético, pois a liberdade nos torna responsáveis pelos nossos atos. Contraditoriamente, a sociedade que se diz livre, é, ao mesmo tempo, a mais irresponsável. Muitos adoram reverberar forças abstratas para não assumir seu cadinho de responsabilidade pessoal. Daí os mitos da “desigualdade”, da “falta de escolas”, da “pobreza”, da “culpa” da sociedade, ou da “falta” de amparo estatal para justificar a omissão moral do indivíduo enquanto ser livre. Isso mostra o total conflito de uma sociedade que se considera “libertária”, mas que se encontra desamparada, num estado de desunião total. E o vácuo que se apresenta desta carência moral é uma ideologização do comportamento, através das neuroses politicamente corretas, que nos transforma mais escravos de comportamentos absolutistas e ditatoriais. É uma pseudomoral que ascende socialmente, patrocinado pelo Estado e pelos engenheiros sociais, e visa justamente aumentar o fosso da liberdade com os paradigmas morais, piorando mais ainda os problemas sociais. É o veneno do relativismo moral, da criminalização dos laços íntimos da família e da responsabilidade individual, na introdução de comportamentos artificiais, que torna uma sociedade mais imbecilizada e amorfa moralmente. Os nossos avós tinham um privilégio na sociedade patriarcal: a família era rígida, mas acolhia com amor. E a moralidade que compactuavam, por mais autoritária que pudesse parecer, não isentava o indivíduo de seus atos. Isso dava um caráter de maturidade espiritual neles, mais do que muitos adultos de nossa época. A sociedade moderna, despersonalizada de seus laços íntimos, poderá ter um patriarca abstrato e indiferente, que subjugará os indivíduos numa solidão sufocante e carente de sensibilidade: o Estado. E quando isto ocorrer, ainda teremos saudade da pobreza digna de nossos avós...

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

As elites ocultas na democracia. . .


Um fenômeno parece pouco observado nas democracias modernas: a condenação sistemática das elites, enquanto, contraditoriamente, estas mesmas se tornam mais fortes, mais poderosas e menos visíveis na política. Desde a revolução francesa, é um lugar comum a condenação sistemática dos ricos, dos bem situados, dos nobres, das inteligentes e dos aristocratas e das meritocracias em geral, com a pecha de que as elites são uma turma de malvados que conspiram contra a democracia e a igualdade. A literatura do século XIX é cheia de ódio aos homens de destaque. E como não devia deixar de ser, os burgueses são as vítimas do momento. . . No entanto, se as elites são odiadas, quem governa a democracia? É o povo? Só um soberbo idiota é capaz de crer nisso! As elites sempre governarão as nações, sejam elas boas ou ruins!

Na verdade, o igualitarismo democrático criou um precedente, no mínimo, estranho: em nome de se combater as elites, acabou por criar mecanismos para torná-las mais ocultas, mais secretas, menos vistas e mais poderosas. Uma característica peculiar disso, é que a condenação sistemática das elites publicamente conhecidas coincide com a ascensão de elites conspiratórias, que tomam o poder, fora das vistas do povo e da sociedade. O exemplo clássico disso é a maçonaria, no século XIX. Essa instituição nasceu como uma espécie de irmandade, cujas razões remontam às perseguições religiosas e políticas contra eruditos e pensadores europeus nos séculos XVI e XVII. A maçonaria misturava elementos medievalistas de obediência e lealdade grupal, ordem secreta e preceitos rituais esotéricos e ocultistas de introdução iniciática. Ela refletia as tendências intelectuais européias dos Rosa-Cruzes alemães e outras associações intelectuais, que nutriam uma idéia de criar uma sociedade perfeita e utópica, com uma mescla de racionalismo e milenarismo. A sociedade “esclarecida” oculta devia pensar e orientar a humanidade sem ser vista. No século XVIII, essas tendências milenaristas se abrandaram, para uma visão mais laica da realidade. Na verdade, a maçonaria é produto da feroz repressão política e religiosa na Europa do século XVII, que acabou por formalizar uma sociedade intelectual que escondia seus propósitos, por uma questão de sobrevivência.

Porém, este caráter secreto acabou por se tornar uma espécie de disfarce para o mando. Em países como Inglaterra, Estados Unidos e mesmo o Brasil, a democracia constitucional se coadunou perfeitamente com a ascensão e os auspícios de dessa elite invisível. Mesmo num país sem tradições aristocráticas, como os Eua, a maçonaria se tornou uma espécie de casta nobiliárquica, cujo discurso igualitário e libertário camuflava um projeto grupal de poder, de Estado e de sistema político. No final das contas, as brigas parlamentares, as disputas presidenciais e até mesmo as guerras provinciais entre partidos políticos, facções monárquicas e republicanas, acabavam sendo briga de maçons. É claro que os maçons não dominavam tudo, ou, pelo menos, eles encontravam resistência. Embora a influência da maçonaria na política seja notória no século XIX, há um exagero mitológico quanto a uma certa onipotência de suas atividades políticas. Todavia, o caráter secreto da maçonaria incrementava certas forças a esse grupo, e o fato de não ser visto aos olhos do público facilitava muito os anseios de uma elite no poder.

O surgimento de seitas iniciáticas ocultas é um dado impressionante nas democracias modernas. A maçonaria, ainda que involuntariamente, deu incremento ao revolucionarismo moderno e a organização secreta das elites.


Se o grosso da maçonaria tinha como projeto, um governo racionalista, partidário da tolerância e de alguns valores laicizantes no universo político, no entanto, isso não impediu que a velha tradição milenarista que a engendrou criasse uma seita de fanáticos dispostos a qualquer coisa para modificar a realidade pelas utopias. Neste ínterim, a revolução francesa foi o exemplo mais acabado dessa ascensão do revolucionarismo milenarista no poder. Os jacobinos, os girondinos e suas demais facções políticas simulavam uma oposição direta, o que era apenas uma briga política interna facciosa dentro de um mesmo projeto político e de um mesmo grupo maçônico. Os clubes, salões, associações e irmandades políticas, sob o disfarce do discurso populista, ocultavam suas reais intenções elitistas. Tinham um projeto comum, que era derrubar a nobreza, ou seja, a “elite”, para se tornarem as novas elites. E quando derrubaram o rei, a monarquia e os nobres, só restou a disputa atroz pelo poder, com a decapitação sistemática de cabeças a granel. Os jacobinos não se contentaram com isso, apenas: quiseram destruir a religião cristã e impor uma espécie de pseudo-religião estatal, inspirado nos dogmas da maçonaria. O Estado, tal como no paganismo romano, tinha sua religião civil, e seu líder, Robespierre, era o César “incorruptível”. Eis o que foi a revolução francesa: um banho de sangue, um prenúncio da tirania brutal e a impetuosidade de uma casta cheia de idéias milenaristas e revolucionárias, a ponto de destruir todos os elementos culturais, morais e institucionais da sociedade civil.

Neste processo, há um aspecto que acompanha esta ascensão conspiratória: a crescente centralização do poder do Estado e a onipotência do poder político. Se na Revolução Francesa, o Estado republicano era muito mais opressivo, brutal e tirânico do que a monarquia absolutista, inclusive herdando todo os elementos odiosos do regime monárquico, as revoluções do século XIX continham as sementeiras que deram incremento aos regimes totalitários do século XX.

Por certo, o paradoxo do Estado moderno é a suposta exigência de publicidade e transparência nos negócios públicos, ao mesmo tempo em que ele engendra uma gigantesca burocracia, invisível, distante, fora dos olhos dos governados. As elites literalmente odiadas são aquelas vistas aos olhos do povo. No mundo medieval e renascentista, os nobres, os gentis-homens e os aristocratas em geral, eram vistos pelo povo. Eram vizinhos de seus povoados, e embora tivessem um modo distinto de vida e de mundo afastados da plebe, os governados sabiam, de fato, quem governava. Nobreza era símbolo de status e de referências políticas; ser visto por todos como exemplo e como autoridade política era o cerne da nobreza: la noblesse oblige! Embora houvesse alguns inconvenientes sociais na distinção aristocrática, porém, a tradição consagrada, aos olhos do povo, era a de que a família do príncipe encarnava simbolicamente o consenso político. No entanto, a centralização monárquica, aos poucos, criou um certo distanciamento político das elites nobiliárquicas com o povo e esvaziou de poder da nobreza, que a partir do século XVIII, se tornou uma classe ociosa, decadente. Curiosamente, o poder da burocracia nasceu com o rei, que conseguiu aniquilar o poder de seus pares nobres, e, involuntariamente, promoveu uma força além dele. A monarquia criou uma legião de burocratas poderosos, porém, ressentidos com o status dos nobres. Eram os burros de carga da monarquia, enquanto viam que os dividendos ficavam com a classe nobiliárquica. Daí a entender a vulnerabilidade do príncipe, do rei ou do nobre, em relação a seus inimigos republicanos. A burocracia nascente que atacava a monarquia em público, por ser elitista, escondia o fato de que foi essa elite decadente que a promovia. Os reis e os nobres, como figuras eternamente visadas, tornaram-se vulneráveis ao julgamento da opinião pública, dominada pelos elementos hostis à monarquia. E no final da história, o descontentamento dessa elite burocrática acabou por patrocinar o processo revolucionário. Quando a revolução francesa degolava nobres, a aristocracia era apenas uma figura morta, amorfa, uma carga pesada, dentro da verdadeira elite republicana que manietava a guilhotina.

A revolução francesa, ao contrário do que dizem, nunca promoveu a burguesia. Ou melhor, se promoveu, foi de forma involuntária. O processo revolucionário francês nunca foi liderado por burgueses, no sentido que dá essa palavra. A grande maioria de seus líderes era de revolucionários profissionais, membros de clubes elevados a seitas messiânicas, com seus ritos secretos e suas idéias grupais. Membros da classe média, criados pela burocracia monárquica, ou então oriundos da baixa nobreza e do baixo clero, não continham nenhum projeto que elevasse os burgueses à elite da sociedade. Por mais que houvesse algum burguês nesse meio, não tinham nenhum projeto que promovesse politicamente a burguesia. Na verdade, nutriam um sentimento de apologia ao Estado, enquanto simulavam ódio aos abusos da monarquia. Se a burguesia ascendeu ao poder, foi precisamente pelo vácuo político das mortes sangrentas que a revolução francesa deixou. A grande maioria da burguesia, como dos camponeses e do povo era conservadora. Por mais que as velharias da monarquia não agradassem a muitos burgueses, a grande maioria poderia querer reformas, mas raramente revoluções. Mesmo os camponeses nutriam mais lealdade aos seus nobres do que aos republicanos. A rebelião de Vendéia, na França, quando camponeses armados defendiam os gentis-homens e os bispos das paróquias, é o exemplo clássico do quanto eram minoritárias as simpatias pela rebelião republicana. Superado o frenesi sanguinário dos jacobinos, e mesmo o aventureirismo imperialista de Napoleão Bonaparte, os burgueses e uma boa parte do povo aderiram de bom grado, a qualquer sinônimo de estabilidade política monárquica bourbônica. E mesmo que houvesse a república, os brios revolucionários mais violentos eram suprimidos.

Porém, tal como o aristocrata, o burguês se tornou uma figura visada. Se a distinção nobre era um status político, a distinção burguesa implicava no status de riqueza. Os mesmos venenos revolucionários contra o status nobiliárquico, agora se deparavam contra o recém status fundado na ostentação burguesa. Ou seja, mais uma vez, as elites odiadas são aquelas observadas. E como tal, o processo revolucionário, acatado por membros de elites ambiciosas, mas rejeitado pelo meio político, explorava o ódio antiburguês, pelo epíteto da “desigualdade social” e dos valores do “igualitarismo”. Os revolucionários organizavam seus movimentos, dentro de idéias messiânicas, desejando moldar a humanidade dentro dos parâmetros de seus valores. E como não devia deixar de ser, exploravam o sentimento de inveja da população contra as elites visíveis, manipulando suas divisões, enquanto preparavam o terreno para eles mesmos se tornarem a nova classe dominante.

O século XIX criou uma nova modalidade de sociedade secreta: o partido revolucionário. Misto de partido político, seita milenarista, organização paramilitar e grupo terrorista, tal associação surgiu entre os grupos radicais socialistas e anarquistas, que até então, pipocavam na política revolucionária na Europa Ocidental e na Rússia dos czares. Em particular, na Rússia, esse partido revolucionário secreto envolvia-se numa ideologia radicalmente destrutiva: o niilismo, que preconizava a ruína completa da sociedade vigente, para um novo modelo de sociedade, embasado nos quesitos grupais partidários socialistas. A perversão moral desses movimentos dizia respeito ao próprio critério de organização deles: a individualidade é moldada de acordo com a sujeição total ao grupo. O grupamento serve para policiar o comportamento individual; e quem fugisse na linha da organização grupal, seria sumariamente eliminado. Na verdade, era uma seita de fanáticos com ares de máfia criminosa. O “catecismo revolucionário” de Netchiaev era o reflexo sombrio da nova moralidade revolucionária e iniciática: tudo pela revolução, nada contra a revolução. Deus, família, propriedade, cultura, amores, relações individuais e a própria individualidade deviam ser esmagadas pela fúria revolucionária. O revolucionário não tem pátria, não tem família, não tem amores: a única obsessão é a revolução. E como a introdução iniciática implica desligar o indivíduo de todos os laços pessoais que o humanizam, a resposta é brutalizá-lo moralmente, até o ponto em que ele possa fazer e obedecer tudo, em nome da causa. Daí o escândalo quando Netchiaev mandou um discípulo de seu grupo para que matasse um recalcitrante, que desejava se desligar do movimento: a prova de lealdade espiritual a um grupo de criminosos sacrifica a amizade e a dissidência. Ou até a vida.

As revoluções violentas são, em muitas situações, filhas espirituais das sociedades iniciáticas, de cunho socialista. A conseqüência básica do movimento de Netchiaev foi o partido bolchevista na Rússia. A forma rígida, centralizadora e servil dos discípulos desse partido é uma herança do movimento que o próprio Lênin soube captar, quando participava em um dos grupelhos inspirados pelo próprio Netchiaev. Lênin era militante atuante no “Narodnaye Volia” (A Vontade do Povo), grupo terrorista e niilista russo, partidário dos ideais do “Catecismo Revolucionário”, e adaptou, como poucos, a ideologia niilista com o marxismo alemão. Foi uma simbiose perfeita: a ideologia de violência totalitária e estatólatra de Marx com os mecanismos terroristas e criminosos de organização do movimento anarquista russo. Se o quesito da lealdade grupal é o sacrifício do indivíduo pelo grupo e a delação mútua para manter a coesão orgânica do movimento, essa antimoralidade, sob o domínio do partido totalitário, abrangeu todo o corpo social para subjugá-lo e destruí-lo. Em outras palavras, os indivíduos eram coagidos a traírem seus laços de família, seus valores pessoais, seus amigos, seus pais, pela lealdade onipotente do partido e da “causa revolucionária” imposta pelo Estado. A cultura de violência, expurgos, assassinatos em massa e delações mútuas nos regimes comunistas é a lógica de um esquema de movimentos iniciáticos fanáticos, que transformam a sociedade numa mera extensão de seu grupo. Em miúdos, os países socialistas se tornaram uma verdadeira sociedade iniciática de Netchiaev. E numa democracia, os movimentos socialistas escondiam seus crimes e sua duplicidade revolucionária, aceitando tanto o jogo democrático, como agindo criminalmente de forma a destruir o sistema. É, em suma, uma ética de crime organizado, sob sua forma política.

No entanto, o bolchevismo não é o único movimento com estas características. O nazismo e o fascismo são crias do mesmo fenômeno político. O nazismo não só era uma mistura de um partido, seita, pseudo-religião e bando criminoso, como uma casta que nutria rituais pagãos germânicos. E o fascismo, com seus rituais nacionalistas dos símbolos do império romano, e mesmo com sua organização militarista, também é outra mera imitação do fenômeno revolucionário leninista. Contudo, o nazismo e o fascismo adaptam a sua crença de casta de eleitos, dentro dos padrões da raça ou do nacionalismo corporativista. Isso diferencia do bolchevismo, ao menos na aparência ideológica, já que a idealização castiça de todos eles é a elite dos revolucionários profissionais, prontos a tomar poder em nome do povo. Na prática, a ideologia da raça superior, da nação suprema entre as nações e da classe revolucionária eleita pela história é visivelmente semelhante, na construção lógica. São variações de uma mesma essência orgânica de movimento político e ideológico.

Há outra característica das elites secretas revolucionárias: elas invocam uma ideologia em que a humanidade é uma luta de todos contra todos, uma sucessão de conspirações ocultas. O elemento de violência hobbesiano é explícito no âmago dessas crenças, já que a sociedade é sempre uma palco de luta e a política, um estado de natureza. Na ideologia de classe preconizada pelos bolchevistas, os burgueses seriam uma elite de salteadores, que, inventando uma falsa democracia, conspirariam para se manter eternamente no poder. Os nazistas aplicaram o mesmo raciocínio aos judeus: a Alemanha era dominada pelos sionistas, e como tal, havia uma conspiração para dominar o mundo, patrocinada por eles. Toda uma trama diabólica se escondia sob a dominação judaica: a conspiração bolchevista, a conspiração dos banqueiros e capitalistas judeus, a "traição" contra os alemães, no Tratado de Versalhes, que deu fim à primeira guerra, etc. O delírio antisemita também foi usado pelos soviéticos: os judeus eram acusados de "cosmopolitistas", "conspiradores", "revisionistas", "inimigos do povo", e elevados a uma classe inimiga. E os expurgos contra os militantes judeus do Partido Comunista não tiveram fim. Na realidade, as seitas iniciáticas projetavam para os outros, a sua própria visão de mundo. Luta de classes e de raças são definições do processo de disputa pelo poder deles. No intento autojustificável de sua organização, esses grupos forjam uma realidade que compactua com o cerne espiritual de suas ideologias.

A megalomania dessas seitas não tem fim. Elas preconizavam uma visão platônica de mundo, e, em face disso, almejavam moldar à humanidade na esfera da sua loucura coletiva. Daí a entender o porquê do socialismo soviético e mesmo do nazismo terem sido sistemas políticos imperialistas, no amplo sentido da palavra. A Alemanha Nazista representou um profundo perigo à humanidade, tanto quanto o bolchevismo. Eles quase devastaram a civilização e impuseram um período de trevas por todo o século XX, em guerras e aflições.


Se por um lado, este fenômeno foi causado pela tragédia da ascensão das massas na democracia, por outro, a reivindicação de uma autoridade moral do Estado acabou por promover uma centralização brutal do poder das elites. Todos esses elementos se casam com as sociedades iniciáticas, já que as massas não pensam por si mesmas e a autoridade absoluta é propícia a organização massificadora. De fato, os movimentos de massas, criados pelos regimes socialistas, sãos conseqüências lógicas das formas orgânicas de seitas iniciáticas. Mesmo o materialismo reles e vulgar nas democracias, com a preocupação demasiada do bem estar material, foi bem explorado pelas sociedades iniciáticas, até porque quase todas elas nutrem ideologias materialistas e anti-espirituais. O "espiritualismo" grupal desses movimentos é uma total negação do espírito e da transcendência, um rebaixamento moral do homem. Se as novas elites dão migalhas materiais aos povos infantilizados por um poder paternal, do resto, elas comandam despoticamente todo o pensamento e a conduta humana. Reduzem a humanidade como gado!

Surge aí uma casta elitista e invisível, que não assume as responsabilidades inerentes ao governo de autênticas elites, enquanto culpa justamente os inimigos e os rivais como “elitistas”. Isso porque seus métodos de dominação são invisíveis: não se sabe onde termina o poder do Estado e onde começam as ações políticas da sociedade civil. O projeto totalitário é basicamente isso: um poder invisível, onipotente, que policia, oprime e extermina a liberdade civil, pela conjectura de se desconhecer quais os limites e as ações do poder do Estado e das elites que governam. E é precisamente pela falta de limites é que há o poder absoluto.

As elites revolucionárias não se assumem como “elites”: a demonização das “classes dominantes” na democracia serve justamente para apenas destruir as elites tradicionais. Na verdade, o discurso de combate às elites foi um dos instrumentos mais perfeitos de ascensão das novas elites ao poder, seja na democracia, seja em um processo revolucionário. A moda agora é dizer-se do “povo”, ser contrário aos elitismos. Tais facções políticas se unem às pessoas rejeitadas e infelizes e se dizem porta-vozes delas. Enquanto isso, os políticos exigem para si um poder jamais sonhado pelas elites tradicionais: querem todo o monopólio do poder estatal, da cultura, da moral e da opinião.
É pior: a destruição sistemática do conceito das elites devasta a responsabilidade moral, ética e intelectual que elas personificam. O arquétipo tradicional e cultural de elites verdadeiras é precisamente encarnar as melhores lideranças e os valores mais autênticos de uma sociedade. Os grandes homens de cultura, os sábios, os eruditos, os mais valorosos, honestos e meritocráticos, em uma sociedade sã, simbolizam o verdadeiro universo aristocrático das elites. Elas servem de modelos para outras pessoas, de exemplos daquilo que a sociedade possui de melhor. As elites verdadeiras engendram valores e deveres para com sua posição social. As democracias, mais do que qualquer outro sistema político, precisam de elites, para contrabalançar o igualitarismo democrático. A condenação sistemática dos valores das elites, acaba criando um vácuo de representação, que no final, os piores tomam conta de tudo. A revolta igualitária contra as elites, em especial, dos grupos revolucionários, é um ódio contra tudo aquilo que é superior, em favor dos medíocres e dos mal intencionados. A ascensão de homens vulgares, abjetos, desonestos, imorais, criminosos aos papéis de elite, é um dos maiores engodos das sociedades democráticas. As elites postiças querem o poder das verdadeiras elites, sem nutrir os deveres morais inerentes às autênticas elites. As elites revolucionárias são o contrasenso das elites, uma inversão da ordem moral da liderança, uma perversão do igualitarismo democrático.

O que ocorre hoje no Brasil, na Venezuela, na Bolívia e no Equador, além de uma boa parte da América Latina, é a ascensão de novas elites, despóticas, revolucionárias e totalitárias. O protoditador Hugo Chavez, na Venezuela, destrói uma classe média e rica agonizante, enquanto esta é massacrada justamente por representar um papel de bode expiatório do governo. As oposições são “elitistas”. Ou melhor, qualquer oposição, por mais pobre que seja, soa “elitista”. “Popular” é o governo, que detém o controle total do aparato civil e estatal do país e instala uma burocracia castiça, invisível e onipotente aos olhos do povo.

O Presidente Luis Ignácio Lula da Silva adora condenar as “elites dominantes”: alia-se a elas, ao mesmo tempo em que as enfraquece. Porém, ele cria o mito em torno do “Presidente operário”, quando na verdade nunca passou de um burocrata arrivista sindical, ambicioso pelo poder. Se todos os opositores do governo são acusados de pertencerem à “classe dominante”, “às elites que dominam o país por 500 anos”, e assim por diante, o PT, na sombra dos discursos incriminatórios, é a classe política mais poderosa do país. A extensão de poder que o PT está criando em todo o país é algo inimaginável a qualquer classe política tradicional. É quase uma ditadura. E a democracia promove homens vulgares, inescrupulosos, sem qualquer compromisso com deveres morais superiores. Até porque homens como Chavez e Lula exaltam a vulgaridade e a ignorância das massas, em desfavor da superioridade moral e cultural das elites. Qualquer sinônimo de elevação cultural causa revolta a eles. O analfabetismo funcional de Lula e o histrionismo de Chavez se tornam, aos olhos de um povo ignaro, um modelo, um exemplo de liderança, um projeto de elite. A falta de caráter desses homens acaba sendo um norte para um povo submisso e leviano.


O mesmo princípio de aplica a Morales, na Bolívia e Correa, no Equador: as elites tradicionais são justamente condenadas por não representarem mais o papel das classe dominantes. Ou, na prática, são as elites públicas, vistas aos olhos do povo, enquanto por trás dela, promove-se uma elite secreta, criminosa e iniciática. Há, por trás de todo o revolucionarismo na América Latina, os elementos característicos de uma classe totalitária: crime organizado, guerrilha, militarismo, seita messiânica. E quando Morales e Correa fazem seus rituais pagãos, em nome do culto tradicional e tribal indígena, hostilizando os cidadãos de origem européia em seus países, isso lembra todos os elementos simbólicos que engendraram loucuras, como o paganismo nazista. Há implícita, uma forma de culto racial e cultural.

O mais grave de tudo isso é que esses movimentos têm foro internacional: é o Foro de São Paulo, uma espécie de movimento socialista em escala continental, que organiza as atividades revolucionárias na América Latina. O Foro de São Paulo é uma sociedade secreta, desconhecida pela maioria das populações do continente latino-americano e que hoje governa vários países. O Brasil, a Bolívia e a Venezuela estão sob o seu domínio. Na artimanha dúbia, típica desse movimento revolucionário, as Farcs, o Mir chileno e vários outros grupos de guerrilha e narcotráfico estão sendo gerenciados pelo mesmo grupo, tanto quanto os partidos revolucionários num sistema legal. Aliás, as Farcs são um misto de grupo narcotraficante e terrorista, que assola a democracia da Colômbia, com o apoio formal de Chavez, de Lula e de Morales. Assola, inclusive, o Brasil, com o treinamento de táticas de guerrilha para grupos criminosos, como o PCC e mesmo movimento sociais, como o MST. Não há por que ignorar a ascensão de Evo Morales, o atual presidente da Bolívia, envolvido com o narcotráfico de seu país.

É impressionante notar que um detalhe de tamanha gravidade seja ignorado pela maioria das sociedades latino-americanas e mesmo por uma boa parte da imprensa. Contudo, as elites tradicionais, que deveriam pôr limites à ascensão de um poder perverso, renunciaram ao seu papel. Mostram sinais de decadência, e a despeito do perigo que ameaça todas as democracias, subestimam a força dessas associações secretas. Em alguns casos, querem conter a besta, alimentando sua fome ou mesmo fazendo acordos com um poder que quer destruí-los. E enquanto isso, esse poder oculto se fortalece e se arma, até se transformar o poder instituído. As elites democráticas, que poderiam defender os valores democráticos e da sociedade civil, simplesmente estão vendendo a corda que vai enforcá-los. Apreciam uma tática política, que na prática é suicida. Isso ocorreu com as elites políticas da democracia de Weimar, com a ascensão da Alemanha Nazista, e entre as classes políticas rivais dos bolcheviques, com o golpe de outubro de 1917 na Rússia. O mesmo processo ocorre aqui, no continente latino-americano.

Em toda a América Latina, o aparato ilegal da criminalidade revolucionária se alastra, junto com a conquista legal do poder. Uma visa destruir a outra. Uma prenuncia transformar a ilegalidade em atos legais e destruir toda a democracia. Seja por métodos revolucionários ou democráticos, a democracia está sendo varrida do mapa no continente. E as ditaduras revolucionárias, com seus movimentos secretos, fora dos olhares do povo, estão se estabelecendo, instituindo um poder invisível, inalcançável, absolutista, opressivo, cujo objetivo é levar os países para a servidão. A formação de um poder internacional de repúblicas totalitárias, suprimindo a autonomia das nações e a liberdade dos povos é o que está por trás do "bolivarianismo" de Chavez e a "integração" de Lula, Morales e alhures. Quanto menos se esperar, os povos já estarão sob os grilhões mais perversos do totalitarismo. E os filhos espirituais de Netchiaev e Lênin estarão mais vivos do que nunca, exigindo sangue!

Leonardo Bruno

Belém, Pará, 8 de fevereiro de 2007

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

A dialética destrutiva do Estado democrático: querem censurar a sociedade!


Havia um princípio romano, que foi encontrado na monarquia medieval e que refletiu na política desde então: dividir para reinar. Tal frase pode dar uma conjectura dúbia: dividir o que? Reinar sobre quem? Os romanos entendiam dividir para reinar sobre os inimigos. Já os reis medievais governavam dentro da concessão particular do seu poder aos vassalos. Ou seja, eles dividiam o poder para reinar. Isso gerava uma limitação dos poderes reais em relação à liberdade dos súditos. De fato, as origens do constitucionalismo moderno, como da divisão dos poderes e mesmo do federalismo, provêm justamente do princípio da divisão feudal do reino. As câmaras dos nobres e dos comuns com o rei eram o liame entre a monarquia e a sociedade medieval. Quando os reis cobravam impostos ou mesmo desejavam criar uma lei que renovasse ou contrariasse o hábito jurídico comum, os nobres e os plebeus eram consultados. Mesmo a Igreja Católica era um poder que se contrapunha aos poderes reais e gerava o consenso político dos valores religiosos, dentro da fragmentação do mundo feudal.

No entanto, o fenômeno moderno da democracia parece ter invertido este princípio, ou, no mínimo, corrompido, tal como entendiam os romanos. Dividir para reinar não implica tanto a concessão dos poderes, para que o poder governante seja oficial. Pelo contrário, implica dividir a sociedade, para subjugá-la, enfraquecendo-a e fragmentando-a em torno de um governo absoluto. O processo democrático caminha neste princípio: em nome de atender demandas, em nome de agregar interesses conflituosos, ele acaba por alimentar mais ainda o abismo desses interesses, incrementar mais ainda a discórdia e a divisão da sociedade. A democracia não divide o poder para reinar; ela simplesmente divide a sociedade para concentrar o poder do reino. Interessante notar é o seu dilema: quando mais ela pressupõe atender às reivindicações das massas, mais estende um poder, que esvazia politicamente as ações da sociedade civil. São as burocracias extensivas, onipotentes, invisíveis, que almejam intrometer-se em cada detalhe da liberdade civil e individual.

A cultura politicamente correta e todo os incrementos do totalitarismo cultural envenenam o espírito inicial da democracia. Até porque os elementos libertários da democracia não se coadunam com o igualitarismo radical, o relativismo moral ou com a centralização do poder. Pelo contrário, a democracia liberal nasceu de valores aristocráticos, elitistas, religiosos e fragmentários de poder. Ela foi uma reação ao absolutismo monárquico e à tentativa estatal de esvaziamento político da sociedade civil, da propriedade e das elites intermediárias opositoras do rei. Em outras palavras, o liberalismo inicial era a reação de velhos elementos tradicionais do mundo medieval, contra a centralização crescente do Estado moderno. O liberalismo acabou radicalizando estes aspectos, estendendo a liberdade civil para mais além.

Todavia, a contradição básica criada na sociedade liberal foi estender os elementos da liberdade civil com a ação do Estado. A idéia de um Estado acolhedor de todas as vontades privadas, ou a maioria delas, acabou por gerar um poder político estatal fora do comum. A absolutização da “vontade da maioria”, ou mesmo da “vontade individual” de cada um, em nada escapa das esferas das exigências para o governo. Em nome de milhões de insatisfações, o poder estatal só acata algumas exigências, em detrimento de outras, e no final, dita suas próprias exigências. Ou na pior das hipóteses, a autoridade do Estado, legitimada pela idéia da maioria, faz da vontade estatal a encarnação mesma da somatória dos desejos individuais, ainda que a revelia desses desejos. Na verdade, a democracia criou um vácuo de ação política, em que o Estado, soberano, dita suas normas, suas condições, em nome de falar por toda uma sociedade.

É curiosa a exploração das divisões sociais que o Estado moderno alimenta no mundo democrático. A pretensão de atender a vontade particular de milhões de pessoas ao mesmo tempo é humanamente impossível em qualquer sistema político. Porém, a democracia moderna explora esse subterfúgio, atendendo a apenas alguns desejos em nome de todos, enquanto discrimina e rejeita àqueles que não estão dentro de suas prioridades políticas. No final da história, acaba alimentando as divergências sociais, a fim de anular qualquer oposição contrária a sua onipotência estatal. Não é por acaso que o socialismo foi a ideologia que mais se aprofundou na sociedade democrática moderna. Como o Estado é panacéia pronta para regulamentar e resolver tudo, logo, ele quer intervir em todas os meandros da vida social. E na prática, sob o disfarce de resolver tudo, ele quer controlar tudo.

Há outra peculiaridade no Estado democrático atual: a exploração dos ressentimentos sociais. Os movimentos sociais e muitas ong´s esquerdistas aproveitam, como ninguém, os agrados estatais, para usar os ressentimentos de alguns grupos contra outros. De fato, é a ideologia da luta de classes, transmutada em todos os aspectos da sociedade. A cultura politicamente correta, neste ínterim, é a adaptação da luta de classes na esfera cultural. Se antes era o ressentimento dos pobres contra os ricos, essa linha de ataque se estendeu a outras questões sociais, como a família, a sexualidade, a moral, a religião. E todos esses ódios, muitas vezes artificialmente fabricados, alimentam legiões de fanáticos, prontos para destruir a sociedade, e mesmo a democracia.

Exemplos clássicos não faltam: os movimentos negros, feministas e gays adoram apregoar a idéia de uma vitimização neurótica de sua condição social, enquanto estão aptos a criminalizar a toda uma sociedade instituída. A dicotomia marxista é bastante clara: os negros,“vitimas da exploração capitalista”, devem desforrar nos brancos malvados, historicamente opressores, os mesmos mecanismos racistas de que foram vítimas. A contradição intrínseca do movimento negro é querer combater o racismo, impondo uma legalidade completamente racista e abjeta, que destruirá a igualdade jurídica entre os cidadãos. Patético é presumir que em nosso país, o Estado pretenda destruir o convívio pacífico entre um povo mestiço, inculcando noções de raça na população. O Estado denuncia um racismo que não existe, para simplesmente inventar uma forma de racismo legalmente institucionalizada. As cotas raciais nas universidades, escolas e mercado de trabalho, são o reflexo da ideologização da raça no convívio social. No entanto, os movimentos negros, com o apoio estatal, inventaram uma forma curiosa de fabricar racistas: como estes malvados seres da espécie humana mal são vistos, a militância negra inventou a estória do racista oculto. Eis a loucura do governo: neurotizar a população com o racismo não assumido, que está dentro de nós e que só ele, o governo, consegue ver! O governo é clarividente, consegue ver, além de nós, mais do que nossas consciências! Só falta ler nossos pensamentos e descobrir racistas por telepatia!

As feministas apregoam que as mulheres devem odiar os machos opressores, impondo-lhes uma leva de regras jurídicas sufocantes, a ponto de destruir a família, ou mesmo a relação entre os sexos. A família também é vista como opressiva e a condição materna, um anátema, uma perversa escravidão burguesa da mulher. Não é por acaso que as leis contra o assédio sexual são uma espécie de policiamento total do comportamento entre homens e mulheres. O Estado interfere fiscalizando olhares e cantadas, enquanto cria um estado de paranóia. No final das contas, os precedentes jurídicos significam destruir a confiança nas relações entre amigos, namorados e esposos. E como as feministas, em geral, odeiam o macho, e querem que alguém as defenda, só restam a elas terem algum affair com o ser assexuado chamado governo. Não é de se espantar: um falo, quase sempre, assusta uma feminista!

E os homossexuais, em nome de seus “direitos”, querem criminalizar opiniões, comportamentos e manifestações contrárias à suas condutas, fazendo oposição à sociedade heterossexual. Sob determinados aspectos, os homossexuais querem tornar crime a moral heterossexual e cristã; daí a intensa calúnia anti-religiosa do discurso do movimento gay. Daí a tentativa de censura prévia, no intento de impor uma ditadura cultural às avessas, através de leis e regimentos “anti-homofóbicos”. A violenta propaganda anticristã e antijudaica no mundo ocidental espera neutralizar as consciências, para um significado completo de perversão do Estado laico: a destruição da liberdade religiosa e dos valores morais. Idéias religiosas contra o homossexualismo, contra a perversão sexual, contra a promiscuidade e a pedofilia devem ser sumariamente banidas, como “preconceituosas”. Padres, pastores, rabinos, devem ir para a cadeia, por suas idéias “obscurantistas”. As Bíblias devem ser adaptadas aos novos tempos politicamente corretos: Deus é um hermafrodita, homem e mulher; Cristo é homossexual; os apóstolos fazem surubas numa sauna gay. E os religiosos devem, através da coerção, prostituir a sua consciência, pela consciência abjeta do Estado. A monstruosidade deste raciocínio é que tais leis e instrumentos processuais acabam por tornar potencialmente criminosa toda uma sociedade constituída em torno de valores judaico-cristãos. Serão criminosos por razões de consciência, ainda que a lei cometa o simulacro de combater o “preconceito”.

E por falar nesta palavra, usada ad nauseam pelos movimentos politicamente corretos, eis uma outra maledicência do Estado democrático: criminalizar a idéia, por soar “preconceituosa”. Por esta lógica, o governo se presume o sapientíssimo dono da verdade e o burocrata deve ser um pretenso iluminado, a ponto de pensar por todos os preconceitos da sociedade. Como se os movimentos que estão por trás dessa palavra não fossem literalmente preconceituosos, no amplo sentido em que essa palavra acarreta. Oficializam idéias sectárias, odientas, totalitárias, em nome de serem os paladinos da moral, superiores às crenças morais da sociedade e dos indivíduos. E neste apelo, gradualmente, destróem a liberdade de pensamento, de expressão e religiosa.

O curioso deste processo de engenharia social, é que tais leis, regulamentos, censuras prévias e manifestações contra-culturais em nada contribuem para os negros, as mulheres e os gays. Pelo contrário, essas táticas presumem usá-los como massa de manobra, na dialética marxista da luta de classes, patrocinada pelo Estado. O Estado, acirrando o racismo negro, vai forjar “provas” de que a sociedade é racista, estimulando o ressentimento, antes inexistente, dos brancos. As feministas, patrocinando o ódio anti-macho, vão é estimular a destruição da família e do entendimento entre os sexos. E o movimento gay, criminalizando a conduta heterossexual e o cristianismo, alimentará mais ainda o ódio antigay. Tal jogo vai justificar mais ainda a criminalização dos religiosos, cujas reações indignadas serão usadas para oficializar a repressão contra eles.

O Estado alimenta os problemas sociais, fortalece-os e quando os problemas aparecem, ele se oferece como o paladino da solução de tudo, piorando ainda mais o fosso dos conflitos. Ele manipula os sentimentos de inferioridade dos negros os problemas emocionais das feministas e o ódio ressentido dos homossexuais, para dividi-los, torná-los instrumento de discórdia, na busca de uma completa centralização do poder. Tal ideologia os induz à demência policialesca: O negro desconfia do seu vizinho branco e pede ajuda do Estado para acatar seu ódio contra ele, discriminando-o; a feminista odeia o namorado, o marido e o filho e implora ao Estado para policiá-los; e os gays, odientos de toda uma Cristandade instituída, querem ver padres, pastores e rabinos presos, além de uma boa parte da sociedade, por não acatarem seus desejos sexuais. E no final da história, os convívios sociais mais genuínos são destruídos por uma racionalização sombria de ódio e ressentimentos mútuos, cuja intenção é dividir e subjugar uma sociedade inteira. É interessante observar que quase todos esse movimentos sociais têm pleno patrocínio do Estado e fazem plena apologia da autoridade estatal. São apoiados por associações e burocracias nacionais e internacionais, prontos a controlar e moldar o pensamento alheio. Na verdade, os movimentos de minorias são entidades paraestatais, prontos para acolher a destruição da liberdade individual. Na diversidade de ações, há uma unidade de pensamento, nas táticas apresentadas. E onde leva esse caminho de destruição moral e institucional da sociedade privada? Leva a estatização do pensamento, da moral e dos costumes; a destruição dos laços civis particulares mais genuínos; e a divinização de um Estado ditatorial, que em nome de acatar as frustrações das massas, acaba por atomizá-las, promovendo sobre elas, um poder total!