Este texto foi escrito no dia 08 de outubro de 2003. O seu teor ajuda a explicar como as ideologias mitificadoras das massas e do Estado onipotente, mesmo na democracia, levaram o mundo ocidental à ameaça dos pesadelos totalitários. Essa ameaça permanece, na medida em que a democracia, ignorando as limitações expressas do Estado na esfera das liberdades individuais, pode promover o poder mais tirânico da terra. O nazismo, o bolchevismo e o fascismo são sintomas que dessa perversão política. Perversão que banhou de sangue o século XX!
No final do século XVII e por todo o século XVIII, a idéia recorrente em relação à força política do Estado é o da limitação dos poderes. Em parte, fruto da resistência contra os desmandos do poder real, e em parte contra a política econômica mercantilista, tal princípio consagrou os primeiros direitos civis e individuais modernos, inclusive posteriormente a democracia. O Estado era visto como um mal necessário, que devia ser controlado pelas leis, pela divisão dos poderes e contido pela propriedade privada.
Quando imaginamos a idéia de abertura política e de mercado no Século das Luzes, mal se percebe hoje o quanto foram revolucionários os direitos individuais em relação ao poder político do rei e dos nobres. Por outro lado, as guildas e corporações de oficio eram monopólios econômicos de grupos escolhidos pelo monarca ou mesmo por tais entidades, que bloqueavam o desenvolvimento do comércio em geral. A quebra dos monopólios significou uma estruturação concreta das liberdades civis e o inicio da prosperidade econômica que o sistema de mercado proporcionou nos últimos dois séculos. A liberdade política foi um pressuposto necessário à segurança das demais liberdades civis, impondo uma estrutura legal, jurídica e institucional de limites ao poder estatal. Esse caráter saudável da descentralização política e limitação do poder muito se arraigou principalmente nos países de língua inglesa, o que acabou por consolidar seus estilos de governo.
Contudo, parece que o século XIX instituiu uma verdadeira resistência aos valores consagrados pelos liberalismos do século XVIII. Por um lado, conseqüência dos problemas aparentes criados pela Revolução Industrial, e por outro, resultado de novas reivindicações políticas de grupos sociais. Muitos intelectuais militantes, eivados de uma nostalgia e conservadorismo dos modelos passados, invocam a crítica ao sistema capitalista vigente e ao mesmo tempo do sistema democrático e parlamentar.
Quando se afirma “críticas conservadoras”, está se falando daqueles que viam no sistema de mercado um grau de degradação muito pior que os ofícios passados. Fala-se da mudança dramática das relações de trabalho que a industrialização gerou no século XIX, aprimorando técnicas que não somente revolucionaram a produção de riqueza, como as formas de trabalho. Isto momentaneamente acabou por tornar obsoletos os velhos ofícios artesãos e a produção da terra de seu poder econômico dominante.
O crítico mais conservador sem dúvida é Karl Marx. Se Marx invoca sua contemplação ao novo sistema de mercado, sua acidez contra o sistema é refletida em declarações altamente nostálgicas de modelos econômicos outrora passados. A sua crítica ao “materialismo” (isto vindo de um materialista), ao “individualismo burguês” e sua ojeriza a divisão do trabalho, pregando em contrapartida, a idéia centralizadora do Estado onipotente sobre a economia, muito antes de invocar valores progressistas, na verdade, demonstram valores escandalosamente conservadores, em razão de uma particular antipatia que o século XIX consagrou aos liberalismos.
Contraditoriamente, se as inclinações são conservadoras, as justificativas são revolucionárias. No século XIX, vemos a ascensão do racionalismo mecanicista e da técnica científica como explicação para todos os fenômenos sociais. A crença iluminista da razão mecânica aplicada as ciências naturais, poderia ser aplicada às práticas da sociedade, da economia e da política. Não é por acaso que a engenharia social nasceu aí, pela idéia mítica de que um Estado racional pudesse remodelar uma sociedade, através de métodos coercitivos de leis positivas, educação e intervenção na vida privada das pessoas. Na crença messiânica de que a sociedade é regida por “leis” sociais, o modelo de Estado burocrático racional se pautava em forjar e manipular essas leis, e, por conseguinte, toda uma estrutura social. Tal como a ciência natural, a sociedade poderia ser inventada pelos novos engenheiros sociais, descobridores dessas “leis”, como se a sociedade fosse uma pedra a ser esculpida. A sociedade, em suma, nesta visão mecanicista, era um complexo orgânico, uma máquiina, e o indivíduo, mera engrenagem desta unidade orgânica, cujo elemento organizador é o Estado.
Curioso, todavia, é o conceito retórico da “igualdade” nessas teorias. Os inimigos do liberalismo e das sociedades políticas livres daqueles tempos, ao mesmo tempo em que exaltavam a nostalgia de um passado patriarcal, corporativista, autoritário e profundamente restritivo ao individualismo, invocavam uma nova sociedade, camuflando valores “progressistas” do igualitarismo. Mas o “igualitarismo” aí não implica uma extensão mais abrangente de direitos individuais, e sim uma padronização unitária da conduta e do comportamento humano, na fusão do Estado com a sociedade. A nostalgia de um passado despótico se coadunava com uma nova forma mais perfeita e mais completa de despotismo, o despotismo massificador, em que os próprios indivíduos voluntariamente se sujeitariam aos padrões da massa, junto com a complacência servil das massas. E para isso, a técnica científica e a racionalização burocrática do Estado seriam as armas para criar essa sociedade sistêmica, numa organização rígida e militarizada da burocracia estatal. É neste estilo de pensamento, associado à rejeição ao liberalismo do século XVIII, que vemos nascer o positivismo, o marxismo, o materialismo moderno, o racismo e muitas das ideologias totalitárias do século XX.
Há aí uma mudança radical desde então do pensamento europeu no século XIX. O que antes era a idéia da limitação do poder estatal contra a sociedade civil, agora o Estado ganha aura de poder moral sobre a sociedade. É pior, ele ganha aura moral e “científica”. Outro aspecto do alargamento do poder estatal foi o alargamento dos valores democráticos, através do sufrágio universal, uma vez que muitos viam no Estado, um instrumento de reivindicação política contra os grupos abastados. E os políticos viram na legitimação da população, um alargamento maior do seu poder. Por outro lado, novos problemas sociais não previstos realmente exigiam um remodelamento do Estado frente a tais questões.
Obviamente o sufrágio universal fez parte de umas das grandes conquistas democráticas do século XIX. Contudo, parece que a democracia, alargando uma legitimidade ao poder do Estado, acabou por alimentar as sementes da própria contradição. O voto popular, como sinônimo de participação e método de controle dos abusos de poder estatal, tornou-se na prática, um fator de alargamento arbitrário do poder estatal. Tocqueville, em seu brilhante livro, “A Democracia na América”, percebeu na democracia, um perigo de tirania desconhecido, em que os indivíduos, presos nas redomas das autoridades absolutas das maiorias democráticas, seriam vitimas de uma verdadeira tirania da maioria. Nesta nova tirania produzida majoritariamente, o Estado teria um poder inimaginável sobre a população, uma vez que o poder estatal poderia ser legitimado por massas, que em nome de certas regalias, poderiam sucumbir a uma nova espécie de servidão voluntária. A autoridade moral da “maioria” poderia ser incomodamente inimiga das liberdades individuais.
O aristocrata francês via como inevitável as “eras democráticas”, o que em muitos casos era simpatizante. Porém, receava o status da liberdade nas democracias que seriam vindouras, visto que muitos dos atributos democráticos poderiam ser perigosos para as liberdades. Essa tirania da maioria, que tanto Tocqueville temia, era de fato o socialismo, no qual o igualitarismo padronizador seria uma espécie de “igualdade na servidão”, ao contrário da democracia liberal, que seria a “igualdade na liberdade”.
De fato, as ideologias coletivistas do socialismo do século XIX e do nazi-fascismo no século seguinte, viram na idéia da tirania majoritária, um passo direto ao poder político absoluto. Tanto Marx, como Lênin, em sua “ditadura proletária”, como Mussolini e Hitler, na fusão da nação e da raça com o Estado, viam no poder onipotente estatal “a ditadura da maioria sobre a minoria”, personificada em abstrações coletivistas. Em outras palavras, a “ditadura da classe”, “da nação” ou da “raça”. Se a democracia pressupõe a valorização dos direitos individuais, inclusive nos aspectos coletivos, os ideólogos e políticos precursores dos totalitarismos modernos observaram os temores de Tocqueville por outra ótica. Tocqueville invocava a liberdade contra os perigos das tiranias. Marx, Lênin, Mussolini e Hitler invocavam a tirania democrática como fator de destruição da liberdade do indivíduo.
Eis que surgiu o mito do Estado moderno. Se antes o Estado era visto apenas como mero instrumento da sociedade, limitado pelos poderes da vida privada e da emancipação do indivíduo pleno de direitos políticos, os cultores da estatolatria souberam dar uma reviravolta, transformando o Estado em um novo poder paternalista e autoritário sobre a sociedade. Em muitos países da Europa, os parlamentos democráticos sofriam de uma letargia política. De fato, os novos precursores totalitários e inimigos do parlamentarismo e da democracia liberal desconsideravam a legitimidade democráticas parlamentares, porque elas não representavam a massa como um todo, e sim grupos políticos partidários. Não estavam ao todo errados, pois grande parte da população sentia-se indiferente a política.
A solução que apresentaram foi a mobilização permanente das massas, através de um partido arrebanhador de pessoas obedientes e seguidoras de um líder ou partido. Se a democracia liberal não sabia compor uma coesão de massas, a onipotência do Estado e a doutrina do partido único saberiam arregimentar a “legitimidade” das novas paixões políticas. Os fascistas e nazistas tiravam proveito disso destruindo a democracia através dos métodos próprios da democracia. No caso da Rússia, a luta pelo poder foi mais violenta, na imposição de terror e violência política generalizada pelos bolcheviques, na institucionalização de um poder revolucionário e arbitrário.
A decadência da democracia liberal na Europa apresentou também outro colapso, mas de natureza econômica. A Primeira Grande Guerra e a crise de 1929 abalaram a confiança das sociedades democráticas nas liberdades tão arraigadas desde o final do século XVIII. O clamor universal da época tornou-se o clamor moral do Estado e do poder público como panacéia pronta para os problemas sociais. Tal amargura influenciou até os países democráticos mais estáveis, como Inglaterra e Estados Unidos, enquanto nos países de fracas tradições democráticas, como Alemanha e Itália, as democracias foram democraticamente derrubadas por ditaduras de inspiração ultra-nacionalista e totalitária.
O Estado agora tinha autoridade moral sobre tudo, inclusive contra os direitos individuais. Em nome disso, o poder estatal oferecia “direitos sociais” como forma de controle da população, assolada pela submissão e pelo paternalismo. Na Alemanha, na Itália e na Rússia, o Estado detinha um poder político e ecônomo inimaginável, a ponto de decidir não somente sobre a riqueza e a propriedade, porém, até a vida e morte dos cidadãos.
A pluralidade parlamentar foi substituída pela “democracia das massas” ou pelo “centralismo democrático”, ou seja, pelas organizações de massas obedientes à cúpula de um partido único, detentor exclusivo do poder, a quem todos devem prestar obediência, sob pena de contestar a coletividade. Esse tipo de organização era o argumento em que se utilizavam os totalitários comunistas e nazi-fascistas para se legitimarem como poder absoluto. As “massas” e não os indivíduos é que deviam ser representados.
A “democracia de massas” invoca ainda outro poder mais pernicioso do Estado unipartidário: a politização de toda vida em geral. O conhecimento, as artes, a ciência, a literatura, não são autônomos, eles sempre obedecem a uma convicção política, classial ou social predeterminada. Não existe imparcialidade do conhecimento, das artes, das ciências. Tudo é política, devendo ser banido se for contrário ao novo poder. A única ciência, a única arte verdadeira, é aquela que o partido dita para as massas. O Estado-partido é elevado como portador da “ciência” e da “revelação” da realidade na ideologia. Ou seja, o poder político é glorificado com idolatria religiosa.
Tudo que fuja do domínio do partido é a “arte degenerada” dos nazistas ou a “ciência judaica”; e no caso dos bolchevistas, é a “arte” ou “ciência burguesa”. Tais raciocínios implicam o controle partidário e estatal de toda a atividade intelectual. Isto, com a fanatização ideológica como elemento motor de uniformidade e mobilização de massas. Outra conseqüência lógica da politização de tudo foi a eminente destruição da vida privada. O Estado politizando a tudo e a todos, destruiu as esferas divisórias entre o público e privado que o limitavam, conhecendo um poder quase que absoluto. O pior e mais grotesco de tudo, é que o Estado, politizando todas as esferas sociais na dominação total, destrói todos os elementos vitais da política. Monopolizando e controlando a vida, a liberdade, a propriedade e a consciência das pessoas, o Estado conheceu um domínio tirânico nunca visto em toda sua história.
O mito do Estado benfeitor minou a maior parte do século XX. Ele envenenou o espírito da democracia moderna, em novos modelos de tirania, apenas antes previstos por grandes pensadores como Tocqueville. Não é por acaso que essa psicologia reina abertamente ainda hoje, quando se invoca a função do Estado em minúcias da vida cotidiana e até na formação cultural da sociedade, como a educação, ou na produção de riquezas, pela invocação moralizante de “distribuir renda” ou intervir na propriedade privada.
É o “espírito de dependência” que ainda domina o ocaso de certos espíritos. Qual a autoridade moral de políticos, burocratas e meia dúzia de corporações estatais decidirem planejar a vida econômica e social de toda uma sociedade? Com que direito o Estado pode impor como nos educar ou pensar? Que opinião majoritária é satisfatória ou mesmo legítima para destruir as próprias liberdades de escolha desta mesma maioria? Com que direito a renúncia da liberdade de alguns pode ser a obrigatória renúncia da liberdade de um?
Os cultores do Estado total ou do Estado quase total, apelando ao dogma da estatolatria detentora de tudo, apenas justificaram as piores tiranias que a história já registrou. E a “democracia das massas”, na destruição do indivíduo como autônomo ser de escolhas pessoais em favor de um rebanho grupal, apenas consolidou a pior, a mais ardilosa e a mais nefasta conspiração que já se conjugou contra as liberdades do ser humano. Os crimes assombrosos do século XX, o extermínio de judeus, as deportações e assassinatos em massa dos regimes comunistas, como a burocratização da vida privada levemente sentida nos países democráticos, a ponto de levá-los à ruína econômica, são as conseqüências do mito do Estado em nossa época. Nas democracias, o espírito paternalista estatal corroeu a crença na iniciativa individual e nos países totalitários, a sociedade conheceu uma estagnação espiritual em todos os atos da vida civil, com enormes dificuldades de reverter este quadro, acarretando terríveis sofrimentos à população.
É chegada a hora de questionarmos, para a sobrevivência da própria democracia e dos valores humanitários dos direitos individuais que ela procura zelar, a autoridade do Estado no que diz respeito ao poder sobre a vida privada. O mito do Estado provou não somente seu fracasso, como também uma tragédia de proporções catastróficas, que a história nos deixou para ensinar.
Quando imaginamos a idéia de abertura política e de mercado no Século das Luzes, mal se percebe hoje o quanto foram revolucionários os direitos individuais em relação ao poder político do rei e dos nobres. Por outro lado, as guildas e corporações de oficio eram monopólios econômicos de grupos escolhidos pelo monarca ou mesmo por tais entidades, que bloqueavam o desenvolvimento do comércio em geral. A quebra dos monopólios significou uma estruturação concreta das liberdades civis e o inicio da prosperidade econômica que o sistema de mercado proporcionou nos últimos dois séculos. A liberdade política foi um pressuposto necessário à segurança das demais liberdades civis, impondo uma estrutura legal, jurídica e institucional de limites ao poder estatal. Esse caráter saudável da descentralização política e limitação do poder muito se arraigou principalmente nos países de língua inglesa, o que acabou por consolidar seus estilos de governo.
Contudo, parece que o século XIX instituiu uma verdadeira resistência aos valores consagrados pelos liberalismos do século XVIII. Por um lado, conseqüência dos problemas aparentes criados pela Revolução Industrial, e por outro, resultado de novas reivindicações políticas de grupos sociais. Muitos intelectuais militantes, eivados de uma nostalgia e conservadorismo dos modelos passados, invocam a crítica ao sistema capitalista vigente e ao mesmo tempo do sistema democrático e parlamentar.
Quando se afirma “críticas conservadoras”, está se falando daqueles que viam no sistema de mercado um grau de degradação muito pior que os ofícios passados. Fala-se da mudança dramática das relações de trabalho que a industrialização gerou no século XIX, aprimorando técnicas que não somente revolucionaram a produção de riqueza, como as formas de trabalho. Isto momentaneamente acabou por tornar obsoletos os velhos ofícios artesãos e a produção da terra de seu poder econômico dominante.
O crítico mais conservador sem dúvida é Karl Marx. Se Marx invoca sua contemplação ao novo sistema de mercado, sua acidez contra o sistema é refletida em declarações altamente nostálgicas de modelos econômicos outrora passados. A sua crítica ao “materialismo” (isto vindo de um materialista), ao “individualismo burguês” e sua ojeriza a divisão do trabalho, pregando em contrapartida, a idéia centralizadora do Estado onipotente sobre a economia, muito antes de invocar valores progressistas, na verdade, demonstram valores escandalosamente conservadores, em razão de uma particular antipatia que o século XIX consagrou aos liberalismos.
Contraditoriamente, se as inclinações são conservadoras, as justificativas são revolucionárias. No século XIX, vemos a ascensão do racionalismo mecanicista e da técnica científica como explicação para todos os fenômenos sociais. A crença iluminista da razão mecânica aplicada as ciências naturais, poderia ser aplicada às práticas da sociedade, da economia e da política. Não é por acaso que a engenharia social nasceu aí, pela idéia mítica de que um Estado racional pudesse remodelar uma sociedade, através de métodos coercitivos de leis positivas, educação e intervenção na vida privada das pessoas. Na crença messiânica de que a sociedade é regida por “leis” sociais, o modelo de Estado burocrático racional se pautava em forjar e manipular essas leis, e, por conseguinte, toda uma estrutura social. Tal como a ciência natural, a sociedade poderia ser inventada pelos novos engenheiros sociais, descobridores dessas “leis”, como se a sociedade fosse uma pedra a ser esculpida. A sociedade, em suma, nesta visão mecanicista, era um complexo orgânico, uma máquiina, e o indivíduo, mera engrenagem desta unidade orgânica, cujo elemento organizador é o Estado.
Curioso, todavia, é o conceito retórico da “igualdade” nessas teorias. Os inimigos do liberalismo e das sociedades políticas livres daqueles tempos, ao mesmo tempo em que exaltavam a nostalgia de um passado patriarcal, corporativista, autoritário e profundamente restritivo ao individualismo, invocavam uma nova sociedade, camuflando valores “progressistas” do igualitarismo. Mas o “igualitarismo” aí não implica uma extensão mais abrangente de direitos individuais, e sim uma padronização unitária da conduta e do comportamento humano, na fusão do Estado com a sociedade. A nostalgia de um passado despótico se coadunava com uma nova forma mais perfeita e mais completa de despotismo, o despotismo massificador, em que os próprios indivíduos voluntariamente se sujeitariam aos padrões da massa, junto com a complacência servil das massas. E para isso, a técnica científica e a racionalização burocrática do Estado seriam as armas para criar essa sociedade sistêmica, numa organização rígida e militarizada da burocracia estatal. É neste estilo de pensamento, associado à rejeição ao liberalismo do século XVIII, que vemos nascer o positivismo, o marxismo, o materialismo moderno, o racismo e muitas das ideologias totalitárias do século XX.
Há aí uma mudança radical desde então do pensamento europeu no século XIX. O que antes era a idéia da limitação do poder estatal contra a sociedade civil, agora o Estado ganha aura de poder moral sobre a sociedade. É pior, ele ganha aura moral e “científica”. Outro aspecto do alargamento do poder estatal foi o alargamento dos valores democráticos, através do sufrágio universal, uma vez que muitos viam no Estado, um instrumento de reivindicação política contra os grupos abastados. E os políticos viram na legitimação da população, um alargamento maior do seu poder. Por outro lado, novos problemas sociais não previstos realmente exigiam um remodelamento do Estado frente a tais questões.
Obviamente o sufrágio universal fez parte de umas das grandes conquistas democráticas do século XIX. Contudo, parece que a democracia, alargando uma legitimidade ao poder do Estado, acabou por alimentar as sementes da própria contradição. O voto popular, como sinônimo de participação e método de controle dos abusos de poder estatal, tornou-se na prática, um fator de alargamento arbitrário do poder estatal. Tocqueville, em seu brilhante livro, “A Democracia na América”, percebeu na democracia, um perigo de tirania desconhecido, em que os indivíduos, presos nas redomas das autoridades absolutas das maiorias democráticas, seriam vitimas de uma verdadeira tirania da maioria. Nesta nova tirania produzida majoritariamente, o Estado teria um poder inimaginável sobre a população, uma vez que o poder estatal poderia ser legitimado por massas, que em nome de certas regalias, poderiam sucumbir a uma nova espécie de servidão voluntária. A autoridade moral da “maioria” poderia ser incomodamente inimiga das liberdades individuais.
O aristocrata francês via como inevitável as “eras democráticas”, o que em muitos casos era simpatizante. Porém, receava o status da liberdade nas democracias que seriam vindouras, visto que muitos dos atributos democráticos poderiam ser perigosos para as liberdades. Essa tirania da maioria, que tanto Tocqueville temia, era de fato o socialismo, no qual o igualitarismo padronizador seria uma espécie de “igualdade na servidão”, ao contrário da democracia liberal, que seria a “igualdade na liberdade”.
De fato, as ideologias coletivistas do socialismo do século XIX e do nazi-fascismo no século seguinte, viram na idéia da tirania majoritária, um passo direto ao poder político absoluto. Tanto Marx, como Lênin, em sua “ditadura proletária”, como Mussolini e Hitler, na fusão da nação e da raça com o Estado, viam no poder onipotente estatal “a ditadura da maioria sobre a minoria”, personificada em abstrações coletivistas. Em outras palavras, a “ditadura da classe”, “da nação” ou da “raça”. Se a democracia pressupõe a valorização dos direitos individuais, inclusive nos aspectos coletivos, os ideólogos e políticos precursores dos totalitarismos modernos observaram os temores de Tocqueville por outra ótica. Tocqueville invocava a liberdade contra os perigos das tiranias. Marx, Lênin, Mussolini e Hitler invocavam a tirania democrática como fator de destruição da liberdade do indivíduo.
Eis que surgiu o mito do Estado moderno. Se antes o Estado era visto apenas como mero instrumento da sociedade, limitado pelos poderes da vida privada e da emancipação do indivíduo pleno de direitos políticos, os cultores da estatolatria souberam dar uma reviravolta, transformando o Estado em um novo poder paternalista e autoritário sobre a sociedade. Em muitos países da Europa, os parlamentos democráticos sofriam de uma letargia política. De fato, os novos precursores totalitários e inimigos do parlamentarismo e da democracia liberal desconsideravam a legitimidade democráticas parlamentares, porque elas não representavam a massa como um todo, e sim grupos políticos partidários. Não estavam ao todo errados, pois grande parte da população sentia-se indiferente a política.
A solução que apresentaram foi a mobilização permanente das massas, através de um partido arrebanhador de pessoas obedientes e seguidoras de um líder ou partido. Se a democracia liberal não sabia compor uma coesão de massas, a onipotência do Estado e a doutrina do partido único saberiam arregimentar a “legitimidade” das novas paixões políticas. Os fascistas e nazistas tiravam proveito disso destruindo a democracia através dos métodos próprios da democracia. No caso da Rússia, a luta pelo poder foi mais violenta, na imposição de terror e violência política generalizada pelos bolcheviques, na institucionalização de um poder revolucionário e arbitrário.
A decadência da democracia liberal na Europa apresentou também outro colapso, mas de natureza econômica. A Primeira Grande Guerra e a crise de 1929 abalaram a confiança das sociedades democráticas nas liberdades tão arraigadas desde o final do século XVIII. O clamor universal da época tornou-se o clamor moral do Estado e do poder público como panacéia pronta para os problemas sociais. Tal amargura influenciou até os países democráticos mais estáveis, como Inglaterra e Estados Unidos, enquanto nos países de fracas tradições democráticas, como Alemanha e Itália, as democracias foram democraticamente derrubadas por ditaduras de inspiração ultra-nacionalista e totalitária.
O Estado agora tinha autoridade moral sobre tudo, inclusive contra os direitos individuais. Em nome disso, o poder estatal oferecia “direitos sociais” como forma de controle da população, assolada pela submissão e pelo paternalismo. Na Alemanha, na Itália e na Rússia, o Estado detinha um poder político e ecônomo inimaginável, a ponto de decidir não somente sobre a riqueza e a propriedade, porém, até a vida e morte dos cidadãos.
A pluralidade parlamentar foi substituída pela “democracia das massas” ou pelo “centralismo democrático”, ou seja, pelas organizações de massas obedientes à cúpula de um partido único, detentor exclusivo do poder, a quem todos devem prestar obediência, sob pena de contestar a coletividade. Esse tipo de organização era o argumento em que se utilizavam os totalitários comunistas e nazi-fascistas para se legitimarem como poder absoluto. As “massas” e não os indivíduos é que deviam ser representados.
A “democracia de massas” invoca ainda outro poder mais pernicioso do Estado unipartidário: a politização de toda vida em geral. O conhecimento, as artes, a ciência, a literatura, não são autônomos, eles sempre obedecem a uma convicção política, classial ou social predeterminada. Não existe imparcialidade do conhecimento, das artes, das ciências. Tudo é política, devendo ser banido se for contrário ao novo poder. A única ciência, a única arte verdadeira, é aquela que o partido dita para as massas. O Estado-partido é elevado como portador da “ciência” e da “revelação” da realidade na ideologia. Ou seja, o poder político é glorificado com idolatria religiosa.
Tudo que fuja do domínio do partido é a “arte degenerada” dos nazistas ou a “ciência judaica”; e no caso dos bolchevistas, é a “arte” ou “ciência burguesa”. Tais raciocínios implicam o controle partidário e estatal de toda a atividade intelectual. Isto, com a fanatização ideológica como elemento motor de uniformidade e mobilização de massas. Outra conseqüência lógica da politização de tudo foi a eminente destruição da vida privada. O Estado politizando a tudo e a todos, destruiu as esferas divisórias entre o público e privado que o limitavam, conhecendo um poder quase que absoluto. O pior e mais grotesco de tudo, é que o Estado, politizando todas as esferas sociais na dominação total, destrói todos os elementos vitais da política. Monopolizando e controlando a vida, a liberdade, a propriedade e a consciência das pessoas, o Estado conheceu um domínio tirânico nunca visto em toda sua história.
O mito do Estado benfeitor minou a maior parte do século XX. Ele envenenou o espírito da democracia moderna, em novos modelos de tirania, apenas antes previstos por grandes pensadores como Tocqueville. Não é por acaso que essa psicologia reina abertamente ainda hoje, quando se invoca a função do Estado em minúcias da vida cotidiana e até na formação cultural da sociedade, como a educação, ou na produção de riquezas, pela invocação moralizante de “distribuir renda” ou intervir na propriedade privada.
É o “espírito de dependência” que ainda domina o ocaso de certos espíritos. Qual a autoridade moral de políticos, burocratas e meia dúzia de corporações estatais decidirem planejar a vida econômica e social de toda uma sociedade? Com que direito o Estado pode impor como nos educar ou pensar? Que opinião majoritária é satisfatória ou mesmo legítima para destruir as próprias liberdades de escolha desta mesma maioria? Com que direito a renúncia da liberdade de alguns pode ser a obrigatória renúncia da liberdade de um?
Os cultores do Estado total ou do Estado quase total, apelando ao dogma da estatolatria detentora de tudo, apenas justificaram as piores tiranias que a história já registrou. E a “democracia das massas”, na destruição do indivíduo como autônomo ser de escolhas pessoais em favor de um rebanho grupal, apenas consolidou a pior, a mais ardilosa e a mais nefasta conspiração que já se conjugou contra as liberdades do ser humano. Os crimes assombrosos do século XX, o extermínio de judeus, as deportações e assassinatos em massa dos regimes comunistas, como a burocratização da vida privada levemente sentida nos países democráticos, a ponto de levá-los à ruína econômica, são as conseqüências do mito do Estado em nossa época. Nas democracias, o espírito paternalista estatal corroeu a crença na iniciativa individual e nos países totalitários, a sociedade conheceu uma estagnação espiritual em todos os atos da vida civil, com enormes dificuldades de reverter este quadro, acarretando terríveis sofrimentos à população.
É chegada a hora de questionarmos, para a sobrevivência da própria democracia e dos valores humanitários dos direitos individuais que ela procura zelar, a autoridade do Estado no que diz respeito ao poder sobre a vida privada. O mito do Estado provou não somente seu fracasso, como também uma tragédia de proporções catastróficas, que a história nos deixou para ensinar.
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