
Há os contemplativos do livre mercado, os liberais economicistas que acham que a solução da China passa pela liberdade econômica, para daí se exigir liberdades políticas. O problema deste raciocínio é que o capitalismo pode ser perfeitamente controlado pelo Estado, ainda que se permita uma margem de livre mercado. Se a burocracia chinesa, o Partido Comunista e o exército usufruírem do livre mercado, tal questão é um tiro no pé, porque se está financiando a ditadura comunista, ao invés de derrubá-la. Na prática, uma ditadura perniciosa está se mantendo, pelo simples fato de o ocidente, estrábico e tacanho, subsidiar um velho inimigo político.
Uma versão deste raciocínio conta com àqueles que acham que a ditadura chinesa, ainda que perversa, seja um mal necessário. Um país com diferenças étnicas internas (mais de 50 etnias) e quase um bilhão de miseráveis não pode ser segurado por democracias. Pelo contrário, a ausência do Partido Comunista poderia levar o país, cheio de ressentimentos internos, a uma guerra civil incontornável. Embora tal fundamentação tenha certa dose de sentido nas tensões existentes na China, entretanto, não há nenhuma razão moral, ética ou política louvável para justificar a permanência do Partido Comunista no poder. Tal perspectiva é perigosa e acaba justificando os crimes que o regime praticou ao longo do poder.
A China do século XX passou por terríveis tragédias. Sob determinados aspectos, lembra a Rússia, com o incremento de sólidas tradições autocráticas e sua total ausência de conceitos elementares de liberdades civis. E como na história russa, foi vítima de um particular experimento inventado pelas ideologias materialistas no século XX: a engenharia social. Esse histórico, a princípio, dificulta qualquer tradição democrática, pois o grande problema de se revogar as autocracias é o risco de cair em anarquia. Existe um problema institucional sério na China. O conceito de instituições intermediárias, grupos políticos e sociais autônomos, que poderia criar uma sociedade de pesos e contrapesos, além de um equilíbrio entre o poder político e a sociedade, é fraco, senão quase inexistente no país. Há um reflexo condicionado na população de crer que sua vontade é a própria extensão do poder autocrata. Isso lembra, basicamente, a velha maneira dos chineses de direcionar sua reverência ao imperador. O coletivismo chinês é atávico a um povo acostumado a servidão e a submissão completa. É paradoxal que a queda do antigo império chinês tenha deixado o país no mais completo caos. A república que o substituiu, em 1912, retalhou-o numa verdadeira convulsão social e guerra civil. É um vazio particularmente semelhante à Rússia de 1917, quando o czar Nicolau II renunciou. A instituição política era a figura pessoal do príncipe. Saindo o príncipe de cena, a nação inteira se desmorona junto.
Há, no entanto, diferenças entre as velhas e novas autocracias. Na época da velha autocracia, embora o poder fosse centralizador na figura imperial, a burocracia dos mandarins e os proprietários de terras poderiam contrabalançar o despotismo, ao mesmo tempo em que deveriam fazer as reformas necessárias para modernizar o país. Na Rússia czarista, a nobreza foi protagonista das mudanças necessárias a fim de levar o país à modernidade ocidental e capitalista, sedimentando um arquétipo de constitucionalismo no Estado. Entretanto, o problema chinês era mais complexo do que o russo: a China era quase totalmente refratária ao ocidente. Não havia um projeto claro de mudança dos grupos institucionais. Como bem se dizia, era o “império imóvel”. E o papel de reformas coube aos grupos revolucionários, sedentos de utopias sociais. Pressionados pelas circunstâncias dos fracassos internos e externos e por força desses novos grupos políticos, a corte imperial sugeriu uma proposta no sentido de criar uma monarquia constitucional e preservar a unidade do país na figura do imperador. Motivados pelo ódio anti-manchu (a dinastia do imperador, originária da Manchúria, era considerada “estrangeira” pelos novos republicanos chineses) e por uma insaciável sede de poder, os revolucionários tiveram mais força e venceram, derrubando a estrutura monárquica de mais de dois mil anos.
Mais uma vez é necessário considerar que o processo da China republicana, com alguns detalhes diferenciados, lembra a Revolução Russa. Só que no caso russo, as reformas fugiram das mãos dos conservadores e caiu nas mãos dos radicais bolchevistas, destruindo tudo aquilo que o país havia construído em um século. E a China, imóvel no tempo, assistia apática, a troca de poder entre os generais e senhores da guerra e a sua total destruição política.
Quando a República nasceu, a maioria da população chinesa simplesmente a ignorava. Não era produto de um consenso político, mas uma obra de intelectuais. Sun Yat-Sen, o exótico chinês cristão, cheio de idéias belíssimas de democracia e socialismo e fundador da república, mal controlava a nação, ainda apegada ao símbolo do imperador destronado. Na verdade, o nacionalismo republicano carecia de substância, era estranho à China. O país perdeu aquilo que dava sua unidade: a figura imperial. E a nobreza e a burocracia, no vácuo do imperador e das regras confucianas da corte, acabaram criando seus focos locais de poder, unindo-se aos senhores da guerra ou mesmo se transformando em um deles. A China virou um conjunto de feudos políticos e o país se fragmentou. Qual a solução dos republicanos para a reunificação? A criação de um Partido Nacionalista, de moldes leninistas. Surge aí o Kuomintang, o Partido Nacionalista Chinês. O partido único, por assim dizer, virou o substituto do imperador.
O Kuomintang, criado a partir de 1924, (12 anos depois do fracasso político completo da república), conseguiu unificar formalmente uma boa parte da China, ora massacrando, ora se aliando a alguns senhores de guerra rivais. Todavia, internamente, sofria uma crise de identidade política. O nacionalismo chinês era uma confusa mistura ideológica de várias tendências políticas. Somava idéias militaristas e discursos proto-fascistas, junto com recém-fundado Partido Comunista Chinês, que era aliado, senão infiltrado, nas fileiras do Partido Nacionalista. Curiosamente, o caráter de movimento militarizado de massas do Kuomintang se deveu à influência stalinista no Partido. Inclusive, a União Soviética era a base do financiamento militar da república chinesa. O inconseqüente Sun Yat-Sen, ao mesmo tempo em que permitia a aliança com a Rússia, perdia o controle do seu partido, cada vez mais dominado pelos comunistas. Quando morreu, lamentava-se pelo fato de os comunistas terem proeminência no Kuomintang. Entretanto, por ordem de Moscou, eles queriam destronar a chefia do Partido Nacionalista. Stálin, a partir de 1927, obriga o Partido Comunista Chinês a romper com o Kuomintang e insufla uma rebelião com um golpe militar. O novo chefe do Partido Nacionalista, Chang Kai-Shek, percebe a manobra e reprime a intentona com violência, executando milhares de comunistas.
Durante mais de vinte anos, a China sofre os males da guerra civil entre os dois grupos recalcitrantes e, posteriormente, as atrocidades da invasão japonesa no país. E dentro das fileiras do Partido Comunista, um de seus militantes acaba se tornando o seu chefe supremo: Mao Tse Tung. O homem que posteriormente dominaria a China já era conhecido pela extrema crueldade. O inicio da larga lista de atrocidades do Partido Comunista não se inicia em 1949, ano da tomada do poder, e sim na guerra civil. Nas zonas “liberadas” pelo Partido, eram comuns fuzilamentos sumários, perseguições em massa e um sistema de controle policial sufocante, senão nauseante. Os camponeses chineses eram submetidos a um rígido controle e terror em suas vidas privadas e isso foi um fator que manteve a enorme influência dos comunistas sobre eles. Por um lado, isso deu a força política que carecia ao indisciplinado Kuomintang. Não que o Partido Nacionalista não fosse violento. O problema é que era demasiado corrupto e desorganizado. A má administração de Shang Kai-Shek e a total falta de controle sobre um exército faminto, junto com a onda de generais corruptos e bandoleiros, deram enorme força aos comunistas, que cada vez mais se fortaleciam militarmente, a despeito da carência de recursos. O exército nacionalista não conseguiu usar a superioridade militar e logística e muitos soldados desertaram para as fileiras comunistas, não tanto por ideais, e sim pelos soldos que os nacionalistas não pagavam. Em muitos casos, generais e soldados nacionalistas vendiam as armas para os comunistas e aceitavam suborno para trair segredos militares. Muito mais do que a lendária e falaciosa “Grande Marcha” do exército vermelho chinês, fora o caos administrativo e político do Kuomintang que gerou o vácuo de poder. Chang Kai-Shek, o fracassado líder do Kuomintang, com a ajuda dos Eua, foge da China continental e estabelece o governo em Taiwan, o reduto da resistência da ilha nacionalista. Na ausência dos nacionalistas, os comunistas conquistaram o país em 1949.
A ascensão de Mao ao poder abre um novo capitulo de drama na China moderna. Lenta e gradualmente o totalitarismo do Partido Comunista toma conta do país. Lenta e gradualmente propriedades rurais e urbanas são confiscadas, dissidentes são presos ou fuzilados, igrejas são queimadas e todas as classes médias e intermediárias da China são massacradas. Dez anos depois do feito, Mao estabelece as primeiras diretrizes da coletivização forçada da agricultura, o chamado “Grande Salto para Frente”, uma gigantesca manobra de engenharia social sobre a população chinesa. Ao forçar milhões de pessoas para as comunas agrícolas, num regime similar a de trabalhos forçados, ele reviveu os métodos parecidos de Stálin na coletivização da Ucrânia. O preço foi uma brutal queda da produção de alimentos e o perecimento da população pela fome. Regiões inteiras do país, famintas, chegaram ao ponto de comer carne humana para sobreviver. Trinta milhões de pessoas morreram na hecatombe.
Em 1966, poucos anos depois da crise artificial da fome, mais outro crime de enormes dimensões é praticado contra os chineses: a chamada “Revolução Cultural Proletária”, quando milhões de jovens fanatizados, induzidos pela propaganda do governo, foram insuflados a destruir qualquer tipo de cultura ou manifestação intelectual que não fosse do Partido Comunista. Todos os colégios e universidades do país foram fechados e a Guarda Vermelha, composta de jovens analfabetos e semi-analfabetos, espalharam terror e medo por toda a China. A esposa de Mao, Chiang Ching, artista fracassada elevada a chefa absoluta das artes do regime, proibia, senão expurgava todas as obras de artes da tradição chinesa e mesmo do ocidente. Intelectuais, professores, artistas, médicos ou qualquer pessoa que mostrasse um nível cultural superior aos fanáticos, eram maltratados, espancados, torturados, humilhados em praça pública, ou mesmo mortos. Obras históricas chinesas de milhares de anos foram destruídas. Livros de Shakespeare, partituras de Bach, instrumentos musicais e demais obras-primas do teatro e da cultura “ocidental” foram queimados, junto com as bibliotecas. A China entrou num estado de completa guerra civil, quando facções dos guardas vermelhos se digladiavam entre si, disputando ruas, universidades, escolas e distritos na marra, gerando um a mais completa anarquia. Enquanto Mao varria da China todo tipo de cultura intelectual, o “livrinho vermelho” substituía a paisagem cultural de indigência, num processo de gigantesca lavagem cerebral sobre o povo. O frenesi de violência custou a vida de um milhão de chineses ou mais. Quando Mao morreu, em 1976, as universidades e escolas chinesas estavam virtualmente destruídas. O nível técnico dos alunos acadêmicos chineses era tão medíocre quanto o nível dos alunos do ensino fundamental. A nação se viu estripada moral e espiritualmente pela loucura coletiva, ao se alijar culturalmente de inovações intelectuais. O sistema de educação chinês entrou em colapso. E uma boa parte do patrimônio histórico e artístico da cultura chinesa de quatro mil anos foi extinto para sempre.
O problema chinês nos desafia o intelecto, pois o Partido Comunista, muito antes de ser um fator de pacificação social, foi um fator de instabilidade e destruição. Os alicerces sociais das antigas classes políticas e econômicas da China imperial não existem mais. O Partido Comunista Chinês é a nova burocracia de mandarins. E o ditador, o seu imperador. Daí a idéia de democracia ser um barril de pólvora, já que a falta de grupos sociais autônomos, que poderiam suprir a ausência do regime comunista, dificulta a criação de uma nova ordem política, mais compatível com as liberdades civis. Muito da complacência com o regime totalitário chinês tem a ver com o temor do ocidente em assumir a responsabilidade de um bilhão de chineses. Afirma-se, inclusive, que a China é incompatível com a democracia, por conta da ojeriza atávica que tem com o mundo ocidental e por conta de suas raízes autocráticas.
No entanto, esse discurso carrega uma certa dose de fatalismo, já que países similares em autocracias e tiranias foram bastante receptivos aos valores democráticos. Há certo relativismo moral em presumir que as práticas mais bárbaras possam ser acatadas por ser fruto da cultura. Japão, Coréia do Sul, Alemanha, entre outros, com algumas diferenças aparentes, passaram pelo crivo dos totalitarismos ou das ditaduras, e conseguiram absorver a noção dos direitos civis e individuais. Taiwan, a China nacionalista, e Hong Kong são exemplos clássicos dessa influência benéfica ocidental. Mesmo no Iraque ocupado pelos norte-americanos, os iraquianos são mais receptivos à democracia do que a ditadura criminosa de Saddam Hussein. O regime comunista chinês, do ponto de vista moral, ético e político, é insustentável e injustificável. E o argumento de conter, amainar ou mesmo se solidarizar com um regime imoral não tem cabimento na realidade e no bom senso. Pelo contrário, se estará arraigando mais os problemas do que as soluções para ao país, uma vez que, além de ser um modelo político inescrupuloso, é indigno de confiança nas relações internacionais. O totalitarismo chinês é um perigo para as democracias da Ásia e uma potencial ameaça à paz mundial. E o regime comunista é o maior empecilho para a modernização política da China, no plano dos direitos individuais. A política ocidental, portanto, está errada. Não é o regime comunista que deve ditar as cartas para o ocidente. É justamente o contrário.
A China tem solução? A resposta, provavelmente, é sim. Porém, há de se ter o cuidado de não ignorar a realidade daquela nação. A experiência histórica mostra que a imposição do regime republicano, desprezando as suas peculiaridades, acabou arruinando o país. Se houver, qualquer dia, algum processo de democratização da China, ela deve ser embasada lenta e gradualmente dentro de grupos políticos que saibam carregar essa bandeira. Deve ser feita, quando o ocidente tomar uma posição dura e pressionar o Partido Comunista para uma abertura política, no sentido de enfraquecê-lo. Não se deve acatar a chantagem política ou a visão utilitária relativista, que endossa as atrocidades que aquele governo patrocina contra seu povo. Por outro lado, deve se criar um consenso político em torno dos princípios democráticos para que o país não caia na fragmentação política ou no caos. Uma questão nada fácil. São desafios que o tempo dirá.
A China tem solução? A resposta, provavelmente, é sim. Porém, há de se ter o cuidado de não ignorar a realidade daquela nação. A experiência histórica mostra que a imposição do regime republicano, desprezando as suas peculiaridades, acabou arruinando o país. Se houver, qualquer dia, algum processo de democratização da China, ela deve ser embasada lenta e gradualmente dentro de grupos políticos que saibam carregar essa bandeira. Deve ser feita, quando o ocidente tomar uma posição dura e pressionar o Partido Comunista para uma abertura política, no sentido de enfraquecê-lo. Não se deve acatar a chantagem política ou a visão utilitária relativista, que endossa as atrocidades que aquele governo patrocina contra seu povo. Por outro lado, deve se criar um consenso político em torno dos princípios democráticos para que o país não caia na fragmentação política ou no caos. Uma questão nada fácil. São desafios que o tempo dirá.
3 comentários:
Ótimo,caro Conde!!!
KIRK
Excelente texto, Conde. E que se note, algumas dessas práticas o PT e a esquerda politicamente correta, está em avançada fase de implementação. Devidamente, claro, adaptadas ao nosso jeito malemolente de ser, com o nosso ziriguidum, balaco-baco, entendeu?
Sabe como se deve tratar a china? Não comprando nada nem vendendo nada a eles! O Brasil tem comida praia, calor e mulher bonita se pararmos de expostar tanta comida a nossa vai baratear bastante, claro que os latifundiários vão ficar chateados, como vão pagar a universidades dos filhos no exterior e outros mimos, como SUV's, vamos dar casa na praia para eles e uma mesada para não encherem o saco, nem precisam trabalhar são poucos mesmo, agricultura familiar é a solução, vamos empregar no campo o povareu que enche o saco para ter terra, vai sair terra pelos olhos desses pentelhos e vamos ter comida barata nas cidades. é a República da Classe Média, todos ficarão contentes, rs.
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