
Novamente recebo um artigo de Lisandra de Souza, moradora da cidade de São Paulo, a respeito das mudanças rápidas de sua cidade. Bela crônica sobre a capital paulista. É o segundo texto dela divulgado por esse blog. O primeiro foi publicado no dia 18 de março de 2011 e se chama "Nostalgia". Vale a pena conferir.
ONDE ESTÃO?
Leio no Estadão que o cinema Belas Artes foi finalmente desmontado e seu equipamento retirado. Ele seguiu o destino dos demais cinemas da região e não há muita surpresa nisso, exceto pelo fato de o proprietário ter se manifestado, por um ano, contra o fechamento. Infelizmente o cinema é só mais um local, dentre tantos, que deixaram de existir. Manter um cinema de rua funcionando nos dias atuais de HD TV, Blu Ray, DVD, downloads simultâneos é economicamente de uma viabilidade quase nula. Vejo no livro de Inimá Simões, Salas de cinema em São Paulo, fotos dos antigos cinemas que funcionaram na capital nas décadas de 20 a 60. As imagens me surpreendem e sinto uma leve tristeza ao perceber como a cidade e, especialmente o centro, mudaram.
Já se tornou lugar comum assinalar a decadência e a degradação da região central paulistana. Da significativa concentração de salas, uma “cinelândia”, localizada entre Rua Direita e São Bento, Largo do Paissandu, Anhangabaú, Praça da República e Avenida São João, pouco resta, praticamente nada. Algumas salas ainda permanecem fechadas e tombadas, como o Marrocos e o Ipiranga. A imponência e o luxo daqueles ambientes, que recebiam milhares de pessoas em apenas uma sessão, viraram artigos de museu visível ainda no Cine Marabá (e no Marrocos, se fosse reaberto). Os freqüentadores e suas histórias também se perderam no tempo mas não desapareceram completamente graças ao registro de suas lembranças em depoimentos e fotos. O querido Paramount - onde vi meu primeiro filme - inaugurado em 1929 e ao contrário de outros edifícios, não foi demolido.
Os funcionários do cinema Belas Artes estão temporariamente desempregados, assim como também perderam o trabalho os músicos e pianistas na transição do cinema mudo para o cinema falado. Infelizmente o século XX marcou definitivamente a história dos homens com um avanço tecnológico supersônico que continuará em ritmo ainda mais acelerado no XXI. O cinema (provisoriamente ou não) deixou de existir; assim como a mansão dos Matarazzo no coração da Avenida Paulista foi ao chão para ceder espaço a um estacionamento, ao lado de outros prédios de igual valor histórico. A preservação da propriedade, como o exemplo da Casa das Rosas, não teria também relevância cultural (ainda que sua manutenção constituísse uma grande despesa, pouco viável aos olhos de um empreendedor que almeja satisfazer as exigências do mercado)?
Leio também, com anos de atraso, algumas notícias sobre as mudanças no cenário urbano da cidade. Uma rua localizada em uma das regiões nobres do município, a Franz Schubert, era famosa no início da década de 90, por abrigar em seus poucos metros várias casas noturnas. Dentre essas, a Limelight destacava-se pela freqüência de endinheirados e celebridades paulistanas e internacionais. Havia outros locais como o bar Refinaria (na época rendido à moda do pagode), Ibiza e o Kremlin, a última casa noturna da rua. Estive na Rua Franz Schubert apenas uma vez, à procura de um lugar alternativo já que eu e minha prima não fomos (como eu queria) ao Ilha de Capri, famoso por suas inesquecíveis festas regadas a vinho, capeta, sorvetes, queijos e bolos. Atualmente, essa casa oferece serviços de eventos como casamentos, festas e formaturas. O velho “Ilha” manteve-se em atividade durante mais de dez anos na via Anchieta e foi a primeira casa noturna onde coloquei os pés, cerca de um mês após completar 16 anos de idade.
As casas noturnas da Rua Franz Schubert cederam espaço à construção de imóveis luxuosos e espaçosos, de acordo com as necessidades do mercado e do consumidor abastado, e com a escassez de área disponível para tais empreendimentos na cidade. Alguns lugares seguem como heróis da resistência, como o bar Metrópolis, o Carioca Club, o Zais, o Avenida. Mas são raros. Até o tradicionalíssimo Cartola Club, localizado quase na esquina da Avenida Brigadeiro Luís Antonio com a Avenida Paulista, fechou suas portas em 2010. Sobreviver no competitivo mercado empresarial de entretenimento noturno de São Paulo não é muito fácil. A cidade sofre rápidas e contínuas transformações, o cenário modifica-se constantemente.
Tocar no assunto dos cinemas, como escrevi no texto anterior, faz pensar num tema querido para os poetas: o ubi sunt, isto é, “onde estão?” Onde estão as antigas e majestosas salas de cinema de rua da cidade? Foram demolidas ou transformadas de acordo com as necessidades e especulações do mercado e do tempo (além da expansão do metrô). O Colégio São José, minha primeira escola e onde fui alfabetizada, era dirigido por freiras e exclusivo para meninas. Com o tempo tornou-se misto. Por fim, fechou e foi substituído pelo cursinho para bacharéis em direito e concurseiros da empresa Damásio de Jesus, no bairro da Liberdade. Eu era criança e voltava da escola pela mão da minha avó, quando passava em frente do extinto Cine Jóia da Praça Carlos Gomes. Ele me causava uma impressão estranha por ser um cinema exclusivo para exibição de filmes japoneses (o prédio ainda está lá como sede de templo evangélico). Ao sair do metrô, a primeira coisa que eu via era um enorme cartaz pintado de um policial, uma propaganda de café. Não havia o McDonald´s da Praça da Liberdade, somente patos chineses que estavam pendurados e exalavam um odor forte e desagradável. A feira de artesanato e comida típica, entretanto, permanece até hoje todos os domingos.
Dois cinemas, o Santa Helena e o Santa Cecília, foram derrubados para originar uma estação do metrô e o elevado Costa e Silva, vulgo “Minhocão”, respectivamente. O famigerado viaduto colaborou de maneira decisiva para a degradação de vários bairros da região central como Campos Elísios, Consolação, Santa Cecília e República. Requisitos do progresso! Era extremamente estranho morar em frente ao elevado pelo seu barulho desagradável entre 6 e 30 da manhã e 9 e 30 da noite. Era anacrônico possuir uma sacada – obviamente construída antes do monstrengo – com vista para carros, motos e ambulâncias. Além de fora do lugar e do tempo, era inútil: o espaço sequer servia como área de serviço por causa da fumaça dos escapamentos. Onde estaria a paisagem da Praça da República e da Avenida Ipiranga? Fora escondida por outros prédios, embora os três cavaleiros do Apocalipse (Itália, Copan e Hilton) ainda estejam bastante visíveis. Onde estão as pessoas e famílias que faziam o footing na Rua Amaral Gurgel e arredores? O trânsito, a poluição, os mendigos e os travestis tomaram o lugar. Apesar de tudo isso não era exatamente ruim morar ali. Mesmo com tantos fatores desfavoráveis, o metro quadrado da região central é bem valorizado até hoje.
Onde estão? A cidade devora seu passado, ávida em prosseguir rumo ao futuro. O passado em São Paulo, em parte, está morrendo. A prefeitura tombou vários cinemas do Vale do Anhangabaú, mas eles permanecem fechados como incômodas lembranças. A tendência é o esquecimento e destruição do passado e isso é um fator do tempo, embora o Brasil não esteja muito preocupado em preservar sua memória. E hoje, como o poeta Manuel Bandeira, vejo a cidade com dois olhos: um no presente, outro no passado. O Hotel Esplanada, caro Bandeira, não permaneceu catacumba e foi adquirido pelo Grupo Votorantim. O tradicional Mappin Stores ou casa Anglo-Brasileira, após anos de fechamento, é uma imensa loja da Casa Bahia. O belo prédio da Light virou Shopping, felizmente com preservação da arquitetura original. O conservatório musical foi demolido para reconstrução. Decerto Mário de Andrade não reconheceria a sua São Paulo cantada em verso na Lira paulistana. Nem sei se a casa do poeta ainda existe na Rua Lopes Chaves, Barra Funda.
Seria a cidade mais bela na época da minha infância? Não sei ao certo, pois estive afastada por cinco anos. Decerto a atmosfera era um pouco diferente. Não havia tantos camelôs e desesperados na Barão de Itapetininga, outrora rua elegante de finas boutiques da moda de Paris. Seria possível restaurar completamente o velho centro e resgatar suas antigas salas de cinema mesmo que elas não sejam economicamente lucrativas? Está claro que algo se perdeu no turbilhão do caos urbano. Porém, existe alguma coisa que o tempo não destrua? De construções e reconstruções continuamos a sobreviver. Devemos registrar sim, nossa história, nossa memória, o único legado possível a configurar como uma prova de nossa presença para o futuro.
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