
Lisandra de Souza
NOSTALGIA
Ontem ao saber do fechamento do cinema Belas Artes pensei que a sobrevida do mesmo finalmente tenha terminado. Assim como fecharam vários cinemas que frequentei na infância, como o lendário Paramount (hoje Teatro Abril), onde vi meu primeiro filme, "Os Saltimbancos Trapalhões". Era na época em que minha avó residia na Rua Francisca Miquelina, próxima da Rua Maria Paula e da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, onde eu adorava passear e brincar na Praça Pérola Byington (ainda sem grades nem grandes perigos, exceto os do tráfego da avenida). O hall do Paramount era muito bonito, assim como a fachada, que deve ter sido tombada como patrimônio histórico (desse fato não tenho certeza).
Quando voltei a morar em São Paulo, aos 15 anos, andei por todos os cinemas do centro que ainda não eram dedicados à indústria erótica: Ritz São João, Metro, Ipiranga, Marabá, Olido, Arouche e Comodoro. Pouco a pouco eles fecharam e cederam lugar a igrejas evangélicas, estacionamentos ou simplesmente estão inutilizados ou trancados. Desses se salvaram, por enquanto, apenas o Olido e o Marabá, que foram resgatados (o primeiro pelo investimento público e o último pelo grupo PlayArte). Existia uma grande concentração de cinemas na região do Anhangabaú, Avenida Ipiranga e República que foram definitivamente extintos como o cine Barão, onde vi uma versão de Walt Disney para Peter Pan em priscas eras.
Os cinemas de rua continuaram a existir na região da Avenida Paulista, Rua Augusta e Jardins. Para lá migrei e conheci as salas do cine Gazeta e Gazetinha, Gemini, Top Cine, Astor, Studio Alvorada, Paulistano, hoje fechados, transformados ou extintos. O Cine Gazetinha transformou-se no Reserva Cultural, um local alternativo, assim como o Espaço Unibanco (ex-Nacional). Ao Belas Artes eu fui poucas vezes, na maioria delas acompanhada por um amigo (esse sim fanático pelo Belas) que o preferia aos outros. A programação repetitiva me afastou do cinema mas lembro de lá ter visto "Janela indiscreta" de Hitchcock, "Estação Carandiru", "Frida", "Lisbela e o prisioneiro", "As horas" e um blockbuster, o musical "Chicago". As salas (provavelmente não voltei lá após a reforma) estavam com o carpete puído e um cheiro de abandono.
Não me lembro de lá ter voltado após esse cenário de decadência. Havia 2 salas imensas de cinema no Center 3, o Bristol e o Liberty, com decoração temática e escadas de madeira nos quais lembro de ter visto filmes ruins como "Independence Day" e "Diabolique", imagino que no fim da vida dos cinemas. Eu gostava mais de passear pelo prédio do Center 3, que era muito menos frequentado e infinitamente menos “shopping”: o coração do antigo Center 3 era mesmo as salas de cinema. Sequer havia uma praça de alimentação como existe atualmente, nem tantas lojas ou escadas rolantes. Havia apenas uma rampa em caracol, que nos levava ao piso da Avenida Paulista para os cinemas e algumas poucas lojas. Havia um corredor com telefones públicos (!) e reinava até um certo silêncio, onde podíamos nos sentar nos bancos e olhar a tarde findar. Vários sábados cinzentos do final da minha adolescência passei ali, a zanzar solitária. Não tenho lembranças românticas dos cinemas do eixo Paulista, exceto do Gemini, onde fui com um namoradinho “express” ver um filme do Al Pacino.
Está claro que a cidade mudou desde a época em que eu desejava entrar no finado Gazetão pra ver um filme proibido para menores, e gostava de contemplar o tráfego nas escadas do prédio do colégio Objetivo. Assim como há anos deixei de frequentar as aulas do cursinho “Etapa São Joaquim”. Talvez até preferisse o espaço do antigo Center 3, menos barulhento e pouco comercial. Mas penso que as transformações foram positivas: no Center 3 foram instaladas duas agências bancárias, as salas do Bristol depois da reforma hoje somam 6. E há uma grande área de alimentação, restaurantes no piso do cinema, cafés no térreo além de muitos funcionários e consumidores. Em suma: houve uma expansão significativa do comércio, de serviços e de empregabilidade no mesmo espaço antes bem menos utilizado.
Uma vez por semana ainda vou à Avenida Paulista visitar o Conjunto Nacional e arredores. E apesar do Grupo Playarte assumir os cinemas do Center 3, eles permanecem quase vazios. Na última sessão matinê que estive, acho que o público não somava 12 pessoas. Idem para o espaço Unibanco da cidade de Porto Alegre, no breve período em que lá vivi, apesar de estar localizado num shopping center.
Ontem o Cine Belas Artes teve sua última sessão de cinema, esperando o resultado da avaliação do tombamento. Algumas pessoas lamentaram a perda de suas lembranças de épocas menos complicadas e de uma cidade menor. Também eu lamento a perda de vários locais que alegraram o início da minha juventude, como as danceterias Up and Down, Ilha de Capri (SBC), Moinho Santo Antonio, Krypton. Para completar a viagem temporal que empreendo há algumas semanas, ouvi no youtube uma antiga canção bate-estaca do Haddaway, "What´s love?", que traz tantas lembranças de expectativas, diversão, paqueras e alegrias do início dos 90 (Ah, os romances de banca!).
Essa "fase caloura" da minha vida se foi. Ainda caminho solitariamente pela Avenida Paulista, mas nada é como antes. Acredito que todas as coisas tenham o seu tempo, o seu prazo de validade, o fim. Como dizia o livro de Eclesiastes: “Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou”. Não podemos permanecer adolescentes para sempre. O Belas Artes durou muitos anos e penso que não há motivo para tantos protestos: haverá saídas inteligentes para os empresários da cultura se eles tiverem visão e pragmatismo para tanto.
A memória afetiva e cultural pode ser preservada. Por que não criar novas iniciativas? Organizar um livro específico sobre a memória do Belas Artes com depoimentos de seus frequentadores, por exemplo, não seria eternizá-lo de uma forma honesta e útil? De resto, a memória de cada pessoa (e sua história) não será destruída pelo eventual desaparecimento do cinema. Inútil é lutar contra a roda do tempo.
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