quinta-feira, fevereiro 14, 2008

A desmoralização da liberdade.

Uma questão grave que retrata muito bem a confusão do discurso liberal no Brasil (e mesmo no mundo) é a estreita visão economicista e subjetivista de alguns deles. Em parte, essa visão reducionista implica retratar a completa ignorância que esses “liberais” têm da palavra que mais defendem que é a liberdade. Para eles, agir livremente é fazer tudo o que lhe convém, contanto que não incomode os vizinhos, como se a liberdade não necessitasse de pressupostos éticos e morais objetivos para sua validade. Também pudera, o liberalismo brasileiro está contaminado pelas tolices filosóficas dos “libertários”. Em uma perspectiva sensata, a liberdade é um dilema moral e ético e não uma ação arbitrária. Contudo, para os “libertários”, a liberdade é válida como elemento de vontade, não como um agir racional.

Não confundamos liberalismo clássico com libertarianismo. A redução da liberdade numa visão economicista e subjetivista peca pelos mesmos desvarios no que diz respeito a outras condutas sociais. É como se a liberdade econômica não dependesse de um conjunto de principios consagrado pela tradição e pela reflexão filosófica de séculos. Como se as liberdades civis e políticas não fossem originárias de uma cultura cristã arraigada na civilização ocidental e sim de um milagre iluminista criado a partir do capitalismo. Não é por acaso que o liberalismo, dissociado das vocações morais tradicionais, acaba virando niilismo, materialismo, ateísmo e amoralismo.

Um exemplo clássico é a adesão irrefletida dos liberais brasileiros pela “filosofia” da romancista russo-americana Ayn Rand e pelo anarco-capitalismo. O primeiro caso quer se afirmar como um novo ethos, capaz de substituir o cristianismo e outras tradições morais pela “revelação” da romancista. O segundo caso faz parte de um primarismo completo de perspectiva das sociedades políticas, pautado numa noção utópica e idealista do individuo anárquico, fora das instituições. No entanto, todas essas ideologias se baseiam num individualismo autista, doentio, egocêntrico, negando outros elementos também necessários para que o indivíduo se realize. Na verdade, dentre tantas coisas, essas ideologias negam aspectos essenciais do homem, como a moral, a sociabilidade política e sua espiritualidade.

A filosofia de Ayn Rand se pretende “objetivista”. O conhecimento só é válido dentro de uma racionalidade pragmática e visível aos olhos. É uma forma mesclada de empirismo e positivismo vulgar com uma nova linguagem ética. O curioso é presumir que essa teoria pretensamente “objetivista” crie uma idealização prometéica do indivíduo, como um ser auto-realizável, uma espécie de super-homem, juiz absolutista dos próprios atos. Na ótica de seus defensores, o egoísmo, a mais alta expressão de realização do individuo, é também algo “racional”, precisamente porque atende aos seus anseios e preserva sua existência. Esse egoísmo “racional” afronta toda uma suposta moralidade “coletivista”, que exige a renúncia dos anseios pessoais humanos. O pior é que essa ideologia, que se pretende “racional”, rebaixa o homem como servo de seus instintos mais primitivos. Qualquer estudioso de política sabe que viver em sociedade não é fazer tudo que convém; não é satisfazer todos os desejos; não é atribuir somente à vontade o ato de agir. Mesmo a individualidade precisa de parâmetros que renegam muitos de seus caracteres instintivos mais egoísticos. Atribuir ao egoísmo algo “racional” ou mesmo como a expressão de uma moralidade social é dar à vontade e não à consciência, o poder de ditar normas.



Por outro lado, há os anarco-capitalistas, paladinos do capitalismo sem Estado. A premissa básica dos anarquistas de mercado é que o Estado é o culpado por todos os males da humanidade e que só uma sociedade totalmente privatizada resolveria todos os problemas. Leis, estatutos, governos, segurança pública, tudo seria privado e cada um que se vire. A ingenuidade desse argumento se depara com uma completa ignorância de noções políticas básicas: as ações que regem à política não podem ser confundidas com as ações que gerem uma empresa. A política necessita de consensos, de regras morais, de entendimento e de instituições comuns reconhecidos dentro de uma autoridade pública coercitiva. Os anarquistas objetam a suposta parcialidade do Estado, porque é governada por indivíduos. Esse discurso implica uma contradição: se o Estado é governado por indivíduos supostamente parciais, por que o particular seria imparcial numa sociedade onde as leis e mesmo as instituições não possuem nenhuma unidade e nenhum consenso? Sem o governo consentido e reconhecido pela comunidade, cada um será o juiz de seus interesses e não haverá paz alguma para sustentar tanta anarquia. Nem mesmo o capitalismo se sustentaria, pois ele precisa de leis comuns e ordem pública para funcionar normalmente. O anarco-capitalismo é de uma ingenuidade lógica que beira à estupidez.

O perigo maior está na suposta eticidade dessas ideologias. Partidários de um individualismo radical e sectário, todas elas, sem exceção, se recusam a crer numa moralidade objetiva e comum que direcione a conduta individual. A moralidade é sempre um capricho particular, subjetivista, partindo de uma sacralidade incorruptível da individualidade humana contra os desmandos da coletividade. Se a moralidade é um capricho individual, que só diz respeito a cada um, logo, a liberdade é tão somente fruto de uma ação irracional, um fim em si mesmo. Contanto que não incomode à lógica de que todos têm essa liberdade, do resto, tudo é permitido fazer. O absolutismo da ação da liberdade se coaduna com um relativismo moral absoluto no resto. Isso disfarça uma espécie obtusa e simplória de visão moral. A única “moralidade”, por assim dizer, que o libertário aceita, é aquela que ele mesmo impõe.

Não é por acaso que os libertários, por mais crédulos na defesa do livre mercado, sejam apologéticos de aberrações morais em todo o resto. São, em sua maioria, ateus, influenciados pelas idéias "randianas" e negam qualquer critério de transcendência para guiar o homem. Ademais, Ayn Rand é uma feroz critica do cristianismo, acusado de criar uma moralidade não-racional, já que não obedece às condições naturais egoísticas do ser humano. Não é por acaso que seus seguidores são fanaticamente antireligiosos, quando parecem formar uma nova seita de iniciáticos. Na verdade, a própria visão deles de livre mercado é materialista, determinista. Numa versão marxista de sinais trocados, é como se a economia de mercado, em particular, e a economia em geral, determinassem a conduta individual humana e a realizasse absolutamente. Eles em nada ficam a dever aos socialistas nos aspectos ideológicos mais odiosos. E é espantoso que, a despeito de uma suposta pregação liberal, eles adiram a todo o programa da esquerda cultural: aborto, eutanásia, casamento homossexual, liberação das drogas, etc. Eles chegam, em nome da liberdade, até a defender a venda de órgãos humanos. Defendem o “direito de morrer”, através da “legalização” do suicídio. Ou pior, do homicídio consentido.

O mais grotesco do “libertarianismo" é que sua teoria é uma completa destruição da liberdade humana, senão uma deformação completa de sua ação, tornando a individualidade destrutiva. A liberdade humana, na sua autêntica expressão, seja ela na vida privada ou social, é uma ação moral, visando estar sujeita ao que é certo, justo, verdadeiro e autêntico, dentro de escolhas e dilemas. Liberdade é agir segundo sua consciência, de acordo com a justa e reta razão. Essa justa e reta razão não depende dos caprichos individuais e coletivos, mas é percebida pela consciência, através análise dos frutos de nossos atos perante a nós mesmos e aos outros. As leis, a justiça, o governo, a hierarquia, devem estar de acordo com essa racionalidade, essa busca do bom senso. A liberdade jamais é um fim em si mesmo, e sim um meio para se buscar a felicidade, através da boa ação moral. Reitero ação moral, pois, nem tudo que pareça nos levar a felicidade é necessariamente algo bom. É na ação moral, em sua escala objetiva, que os atos que são válidos na liberdade. Na vida social, nem toda liberdade é válida. Ela pode ser corrosiva. Mesmo a liberdade, para existir na vida social, precisa de instituições e valores comuns, para que as pessoas se referendam e se entendam entre si. Só se pode falar de liberdade, se existe a família, a propriedade, a fé religiosa, a moral, e demais valores e instituições que substancializem a nossa ação para o bem.


Rodrigo Constantino se diz porta-voz dessa tendência “libertária”, declarando-se o paladino autonomeado do liberalismo no Brasil. Ou pelo menos, ele pensa que é assim. No entanto, o articulador é uma pura decepção. Não deixa de ser engraçado que o mesmo represente aquilo que há de mais caricatural da filosofia de Ayn Rand: o egocentrismo sectário, o excesso de auto-confiança na própria ignorância e o fanatismo ideológico travestido de apologia da liberdade. Que liberdade Rodrigo Constantino nos promete? Ele, que se diz inimigo dos socialistas, acha que a luta contra o socialismo é só no terreno econômico e político. Ele ignora completamente os aspectos culturais e institucionais da Tradição que tanto odeia, e que formaram nossa sociedade liberal e capitalista. Daí o idiota achar perfeitamente normal defender livre mercado, quando ele adota todo o programa cultural dos socialistas, que é a destruição das instituições do cristianismo, do liberalismo e do capitalismo: a sacralidade da família, da propriedade, da liberdade individual, do direito à vida, etc.



Uma das mais grotescas teorias libertárias, diz respeito à venda de órgãos humanos. Na visão deles, como o indivíduo pode dispor de tudo que é seu, logo, o homem pode vender seus rins, seu estômago, seu pulmão, etc. Constantino não vê nada de anormal um cidadão vender o corpo, ainda que isso seja uma renúncia completa da liberdade. Ora, uma das expressões da liberdade humana é a posse absoluta e irrenunciável de seu próprio corpo. Neste ínterim, valores que dizem respeito ao corpo não podem ser meros problemas individuais. Se existe uma sociedade que preza a liberdade como valor moral e jurídico superior, é lógico que esse valor deve ser levado no conjunto, não numa ação individual. A não ser, claro, que alguém aceite a escravidão dentro das sociedades liberais. Não é um problema individual vender o corpo, pois ele agride princípios consagrados pela sociedade, que é a dignidade humana e a existência mesma da individualidade. O “libertário” Constantino é capaz de, em nome da liberdade, negar um de seus dados essenciais, que é o fato de alguém ser dono de si mesmo. Se uma pessoa pode vender um rim, ele dará poderes para que alguém seja dono de seu corpo, através do rim. Se isso é permitido, o que impedirá que uma pessoa, assinando o contrato, disponha de todo o seu corpo e perca sua liberdade? Na visão patológica de Constantino, isso é perfeitamente aceitável, porque assim é a vontade do indivíduo. O mais bizarro dessa proposta é reduzir juridicamente o corpo no status inferior de “bem”, “coisa”, no sentido material do termo.


Ele acha até razoável vender um filho, porque o pai vendilhão não merece educá-lo e seria uma espécie de "incentivo" aos pais sinceros que quisessem comprá-lo. O que ele não percebe, com essa asneira, é que isso será um incentivo para que os pais tenham plena disposição de usar seus filhos como “coisa”. Seria, inclusive, uma premiação aos pais levianos e irresponsáveis que não se sentem obrigados a educarem os filhos. Contudo, os libertários acham que a licenciosidade é a mais alta expressão da liberdade. Alguns dizem que a obrigatoriedade dos pais educarem os filhos é uma afronta à liberdade individual.

Constantino é o cidadão que defende o "direito de morrer", como se a liberdade pudesse existir sem a vida. Ou mais, a liberdade de se destruir é mais importante do que a vida que a instituiu e faz da liberdade uma razão de existir. Na prática, a tese dele é inócua, para dizer o mínimo. Ninguém impede que alguém morra, até porque todos vão um dia morrer. Mesmo o suicídio não é crime em nossa legislação. O impressionante é a inversão da linguagem, típico da desonestidade intelectual dos libertários: o “direito de morrer” implica alguém matar, pelo consentimento, o enfermo. Isso não é o direito de morrer, mas o direito de matar. Espantoso foi a idéia de um libertário, a respeito da defesa da vida feita por católicos: para ele, a preservação da vida contra alguém que não quer viver seria uma perspectiva totalitária de viver. Uma tamanha perversão moral da liberdade se coadura com a perversão da linguagem, ao apoiar a morte como um ato de liberdade, quando na verdade, é a destruição desta e da vida.
Os libertários são apologéticos do aborto. Na lógica deles, a mãe é "proprietária" do seu ventre e o filho é um intruso que invade a privacidade de seu útero. O feto é uma espécie biológica do MST. Não importa que a criança não tenha culpa de nada e que seja uma vida em geração. Ou que a mãe tenha deveres para com seu filho, só pelo fato de gerá-lo. O importante é que a mãe pode matar seu filho, em nome da liberdade! Curiosa é a pirueta mental que gente como Constantino tem para justificar a legalização do aborto: contrariando a ciência, a vida não começa na concepção. O direito à vida, algo tão consagrado, tanto no cristianismo, como nas idéias liberais tradicionais, é negado, em nome de escolhas levianas e destrutivas. Além do que, assassinas!


Se não bastassem todas essas idiossincrasias que destruiriam a liberdade na sociedade civil, os libertários partem de um virulento ateísmo militante, que no geral, é uma militância de ódio ao cristianismo. De fato, o cristianismo, com sua idéia moral de liberdade, com seus pressupostos transcendentais de justiça, razão e direito, suas exigências de consciência de cada indivíduo para com a realidade e a verdade, e mesmo a solidariedade como a expressão mesma da realização do ser humano, é um contraponto para os libertários, psicóticos autistas e mentirosos até a demência. O culto libertário do indivíduo não é um amor ao indivíduo, e sim um culto ególatra de si mesmo. Entretanto, os libertários, tal como Constantino, têm uma solução pronta para os religiosos cristãos: transformar a fé cristã num capricho subjetivo, tal como a loucura moral deles, enquanto eles impõem o ateísmo como fé pública, na pseudo-moralidade da “profeta” Ayn Rand.


Enfim, essa é a turba de "libertário", que ameaça desmoralizar os liberais sérios: idéias pífias, clichês mastigados, uso repetitivo de palavras vazias e cheias de prepotência. Até porque "liberdade", "razão" e "ciência", na visão deles, significam um imenso vazio de idéias. Uma verdadeira libertinagem! É, na realidade, a desmoralização completa da liberdade!

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns,caro Conde!!!

Excelente,como sempre!!!

KIRK