Este texto curto tem uma história curiosa: escrevi na casa de um amigo, numa viagem que fiz pelo sul. Assistindo alguns comentários a respeito do aborto, eis que redigi o artigo, analisando as premissas da militância abortista. Completeio-o no dia 20 de fevereiro de 2005, em Araucária, Paraná. Fiz umas mudanças adicionais, mas, no geral, a essência do texto é a mesma. Na época, as poucas pessoas que o leram, em específico, as militantes pró-aborto, ficaram irritadas. Paciência, é pra irritar mesmo!Há na opinião dos círculos dito “progressistas”, certas curiosidades paradoxais em relação ao argumento pró-aborto. Os movimentos feministas e esquerdistas tentam, em particular, por todos os meios, não somente censurar ou podar os aspectos morais e religiosos embutidos sobre o assunto; eles também policiam em linguagem e pensamentos, com rótulos disseminados contra aqueles que contestam moralmente tal prática. Neste ínterim, os religiosos anti-aborto são encarados como figuras retrógradas, fruto de uma moralidade mística anticientifica e repressora, enquanto supostamente negam os “direitos” da mulher sobre seu próprio corpo. Muitos comentaristas pró-aborto em nossa imprensa já estereotiparam os católicos e protestantes como seres fanáticos, inimigos da razão, obscurantistas, pelo simples fato de defenderem o direito a vida do nascituro, considerado apenas um mero composto químico sem forma humana.
Um velho argumento maniqueísta aí é aplicado, porém, que convence muitos tolos: a idéia “reacionária” de defender a vida do nascituro, recusa o direito “progressista” da mulher de ter o poder sobre o próprio corpo. Mas tal argumento sobre o próprio corpo esconde um leve sofisma: o fato de a mulher ser proibida de abortar não nega o direito sobre si mesma e sim sobre a vida do nascituro. E o paradoxo mais grotesco do progressismo materialista apregoado pelo feminismo é esse: em nome de uma suposta soberania do corpo feminino, o feminismo militante exige que a mulher tenha plenos poderes de vida e morte sobre o filho. Isto implica vários outros paradoxos brutais pela seguinte razão: a de que a militância pró-aborto absolutiza de tal maneira a autoridade materna, a ponto de destruir a vida do próprio filho. E pior, essa autoridade materna absoluta é suicida, pois dispõe a própria renúncia da maternidade feminina, na destruição de uma vida que lhe é alheia e que dá razão a sua própria maternidade.
Devemos nos atentar aos argumentos pró-aborto: a “liberdade” da mulher em escolher a geração da vida e a “autoridade” sobre o próprio corpo. Nestes dois argumentos, no primeiro caso, só há liberdade de escolha moral válida, quando a mulher possui o direito ou não de engravidar. A liberdade de ação aí implícita é uma liberdade de agir sobre si mesmo, não sobre os outros. Direito de escolha se tem sobre nós mesmos ou a nossa vida, não sobre a vida dos outros. Somente neste aspecto podemos dizer que a mulher “tem” a liberdade e autoridade sobre seu próprio corpo. Todavia, essa liberdade e autoridade, no que diz respeito a uma escolha futura da maternidade, não lhe dão poderes nem liberdade de dispor da vida alheia quanto esta é gerada. Eis outra questão: até que ponto se estende essa liberdade e autoridade sobre o feto? Em tal caso, as pregações feministas são uma mistura de incoerência lógica e até desonestidade. Pois a autoridade sobre o corpo naturalmente exclui a autoridade sobre o feto ou embrião que está para nascer, já que o nascituro é um outro corpo, uma outra vida dissociada da mãe. A vida do feto, em suma, não está sujeito a autoridade da mãe.
Se a pose “progressista” é apenas uma roupagem de um reacionarismo despótico, é divertido pensar que a Igreja Católica e outras religiões tradicionais, com todo o conservadorismo, estejam muito mais à frente do seu tempo, ao defender o direito a vida do nascituro. A “autoritária” religião cristã defende o direito de existência do feto precisamente contra o poder de vida e morte da mãe; eleva a vida humana acima de uma maternidade niilista e despótica em torno dos caprichos de uma vontade arbitrária contra um ser humano. O radicalismo da Igreja neste aspecto é maior, uma vez que ela mesma diverge do aborto até nos casos de estupro. É claro que a opinião católica a respeito do aborto nos casos de estupro pode parecer extrema ou radical, uma vez que impõe uma condição muitas vezes conflitante à própria mulher vitima de violência. Contudo, sem querer alongar este tópico, polêmico dentro do âmago da igreja, parece que o catolicismo e as religiões tradicionais se prestam a ser mais coerente com seus princípios do que a própria militância feminista pró-aborto.
Há outro imperativo ético no cerne dos que são contrários ao aborto e que a militância progressista ignora: a idéia mesma moral do respeito à vida. Eis porque quando o imperativo moral é jogado contra o aborto, a militância engajada deplora os aspectos místicos da vida e apela aos critérios “científicos”, e, portanto, aparentemente “amorais” sobre o assunto. A relativização da vida é uma característica deste discurso, querendo reduzir a vida gerada no ventre, como se fosse mero composto químico que poderia ser jogado no lixo. Atribuir a vida que ainda está sendo gerada como mera célula orgânica ou apenas um bichinho que nada tem a ver com a vida é praticamente negar a humanidade de nosso próprio nascimento. Se na gestação da vida o homem não pode ser considerado humano, o que de fato vai gerar além daquilo também pode ser descartável como não humano, o que seria no mínimo, uma incoerência lógica. Aliás, é o que de fato ocorre, pois são omitidos a um público, os efeitos terríveis das práticas abortivas. Elas são por sua natureza muito violentas. Pode-se dizer que o feminismo que defende o aborto não é, nem um pouco amigo das mulheres. Pois o aborto expõe as mulheres a problemas terríveis, não somente na área da saúde física, como na saúde mental. Todavia, o simulacro da linguagem pseudocientífica camufla uma profunda indigência moral. O aborto como argumento cientifico é pretexto para uma completa omissão do discurso moral e ético sobre a vida e sua relação com a ciência. Mesmo porque a ciência não está acima da vida e do bem estar humano. E os aspectos místicos da vida que a religião aborda, no seu culto ao sagrado, são conceitos que estão acima de um mero discurso científico.
Se a mãe pode decidir sobre a vida do feto ainda não nascido, o que falta para decidir sobre os próprios filhos em outras fases da vida? Há as justificativas aparentemente externas, como a miséria, a incapacidade de sustentar os filhos economicamente ou as adversidades sociais como um todo. Porém, se a adversidade social for motivo para obstruir a vida, o que falta fazer para que as mães que concebem seus filhos não os matem de vez, toda vez que eles tiverem alguma dificuldade financeira? Por que uma fase da vida do ser humano teria prioridade sobre outra, no sentido de dar autoridade plena a mãe sobre a vida dos filhos?
Se a Igreja um dia foi condenada no passado por defender uma autoridade patriarcal autoritária, é comicamente retrógrado pensar que feministas defendam o poder de vida e morte de uma matriarca, o que é um sinônimo de despotismo tal, que nem mesmo a Igreja Católica, em sua longa historia, endossou por completo. Muito pelo contrário, a fé judaico-cristã sempre colocou a vida em primeiro lugar, e se o catolicismo fez algo, foi defender as crianças dos abusos dos pais. De fato, os argumentos feministas da autoridade absoluta da mãe sobre o nascituro parecem os velhos patriarcas com plenos poderes de vida e morte sobre os filhos. São, na verdade, as patriarcas de saias, tal como o “pater famílias” romano. Se o patriarca romano tinha o poder de vida e morte jogava seus recém-nascidos no esgoto, as feministas querem ter direitos assemelhados ou maiores que isso. Essas militâncias querem ressuscitar, por argumentos, um poder tão anacrônico quanto nefasto, apenas para satisfazer uma vaidade provinciana de uma “liberdade”, que na verdade, é pura inversão moral.
Há outro jogo retórico na boca dos pró-abortivos: a escolha individual sobre o aborto. Ainda que certas pessoas possam discordar do aborto, crê-se num imperativo de escolha pessoal, inclusive, na idéia de não criminalizar a prática, como se ela tivesse elementos totalmente subjetivos. Contudo, se o direito de tirar a vida de um ser humano é uma escolha permitida, dentro de um processo de formação da vida, o que impedirá de matar em outras fases da vida? O aborto não pode ser uma escolha legítima, porque não é um ato de liberdade em torno de si, mas o arbítrio de um contra a vida de outro. Será que poderemos tirar a vida reduzindo a mera escolha subjetiva, sujeitando a vida de um ao bel prazer de outro? Ainda que os progressistas de plantão falem e reverberem certos “direitos” ou clichês relacionados à mulher, parece que no mínimo, a comicidade do argumento é de um retrocesso atroz, um paradoxo de nonsenses, em suma. Pior é culpar de reacionários, esses que, de fato, defendem sinceramente a vida. Não somente é nonsense do ponto de vista lógico, como uma verdadeira manipulação retórica, além de uma distorção moral.

2 comentários:
Parabéns pelo seu texto!O seu blog é muito exclarecedor e útil!Vc.,embora não o conheça pessoalmente,é uma pessoa de bem,inteligente!Continue assim!...
Conde com o discernimento que lhe é peculiar dá mais um show de argumentação e racionalidade. Parabéns.
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